Alvo de intensas críticas, o Qatar tem tentado convencer o mundo de que não vai perseguir os torcedores LGBT durante a Copa. Isso é, desde que não pareçam LGBT. Eles não podem, por exemplo, demonstrar seu afeto em público. Coisas como segurar as mãos na rua, beijar-se na boca ou mesmo brandir uma bandeira do arco-íris seguem arriscadas nesse país conservador.
A perseguição à comunidade LGBT é um dos temas mais delicados desta edição da Copa, inaugurada no domingo (20) com a partida entre Qatar e Equador. A tensão deve durar até a última partida, em 18 de dezembro -deixando para trás uma questão não resolvida e uma comunidade local desamparada.
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Em um relatório recente sobre o Qatar, o Human Rights Watch documentou ao menos seis casos de espancamento e cinco de assédio de pessoas LGBT sob custódia desde 2019. Ainda segundo essa entidade, o regime exigiu de pessoas transgênero que se submetessem a terapia de conversão. Em resposta às acusações, o Qatar afirmou que o relatório contém informações falsas, incluindo a existência de centros oficiais de conversão.
Uma reportagem do jornal britânico Guardian sugeriu, além disso, que o regime do Qatar está chantageando alguns homossexuais. O governo lhes promete segurança caso ajudem a autoridade a achar outras pessoas LGBT, para que sejam detidas e punidas.
Como outros países de cultura árabe, o Qatar se apoia no islã para proibir, perseguir e punir lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgênero. Não é apenas uma questão religiosa, mas de como essa fé é utilizada. Alguns cristãos, afinal, também se debruçam na Bíblia para condenar e perseguir homossexuais.
O Alcorão, livro que serve de base para o islã, usa a história do reino de Ló para condenar as relações sexuais entre homens. O texto não prevê punições, porém. É mais tarde, na jurisprudência islâmica, que esses castigos começam a aparecer por escrito. Eles incluem chibatadas e apedrejamento, dependendo da fonte.
É complicado, porém, pensar nas sociedades islâmicas tendo como fonte apenas os seus textos. Em seu ensaio clássico "Orientalismo", o crítico palestino Edward Said critica justamente essa abordagem textual do islã, que ignora as realidades vividas.
Historiadores sabem que, até recentemente, impérios islâmicos toleravam -e, às vezes, celebravam- as relações homossexuais. Há uma vasta coleção de poemas homoeróticos, por exemplo, datando do período medieval. Ilustrações turcas e persas registram, explicitamente, o sexo entre homens e entre mulheres.
A ironia é que foi em parte o contato com culturas europeias que levou sociedades islâmicas a condenar e punir de maneira sistemática a homossexualidade a partir do século 19. Europeus associavam um suposto declínio oriental a práticas homossexuais. Populações em territórios de maioria islâmica internalizaram essas ideias. Diversas leis anti-LGBT que existem nessa região foram inicialmente impostas por colonizadores europeus, e mantidas mais tarde por governos independentes.
Essas leis e práticas oficiais não significam, porém, que não existe vida LGBT no Qatar. Como em outros países repressivos, incluindo os vizinhos Emirados Árabes e a Arábia Saudita, as populações locais -e a comunidade de estrangeiros- encontram maneiras de viver as suas sexualidades e expressões de gênero.
Só que eles temem, agora, que o Qatar intensifique a perseguição e a punição como revide por toda a atenção e crítica que o regime recebeu durante as semanas da Copa do Mundo.