Na última terça-feira (6/12), pouco tempo antes do início do jogo de oitavas de final entre Espanha e Marrocos, um grupo de torcedores da extrema-direita espanhola deixou, na porta de uma mesquita em Vitoria-Gasteiz (Espanha), um javali morto acompanhado do recado “vamos caçar os mouros”. Este não foi o único caso envolvendo racismo e xenofobia durante a Copa do Mundo do Catar, que tem evidenciado diversos casos de preconceito entre nações.
O início do campeonato mundial de futebol já foi marcado por ataques racistas logo após o jogo de fase de grupos entre Argentina e Arábia Saudita. A derrota dos argentinos veio acompanhada de uma onda de comentários comparando os árabes – que são, majoritariamente, negros e marrons (povos do Oriente Médio ou do sul da Ásia) – a “escravos” nas redes sociais, além de fazerem apologias ao nazismo e declararem que era uma escolha serem racistas.
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A estreia da Argentina na Copa do Mundo encerrou com a sua derrota por 2 a 1 contra a Arábia Saudita. O resultado inesperado também resultou numa série de manifestações racistas publicadas nas redes sociais, associando os árabes a “escravos” e fazendo comentários abertamente nazistas.
Dentre os ataques, muitos argentinos associaram a vitória da Arábia Saudita a uma “festa de escravos”, e comentários como “Desde quando o escravo aprendeu a jogar futebol?” e “Terminando o mundial, só vão servir como escravos, filhos da p*” não foram difíceis de encontrar. Em muitas das publicações de torcedores argentinos, inclusive, é possível encontrar afirmações de que estes “escolhem ser racistas”.
Essas ações, no entanto, não são surpresa para os brasileiros, que sofrem com ataques semelhantes há algum tempo. Em muitos jogos contra seleções argentinas, seus torcedores têm feito “imitações de macacos” para provocar os jogadores e as torcidas do Brasil.
Durante a fase de grupos da Copa Libertadores de 2022, viralizou nas redes sociais o vídeo de um grupo de torcedores do River Plate fazendo as “imitações de macaco” – e um deles chegou a arremessar uma banana – em direção aos torcedores do Fortaleza. Com a denúncia da agressão pelo Fortaleza, o River Plate chegou a identificar e suspender por 180 dias do clube um dos torcedores, que também recebeu uma punição da Justiça portenha.
Apesar disso, o gesto “viral” serviu de incentivo para que outros casos viessem a acontecer em partidas posteriores. Torcedores do Estudiantes de La Plata também foram filmados em práticas racistas semelhantes sobre a torcida do Bragantino no estádio Jorge Luis Hirsch; e um torcedor do Boca Juniors foi flagrado reproduzindo o gesto na Arena Corinthians – cena que foi capturada pelas câmeras de segurança do estádio e repercutiu nas redes sociais. Os clubes responsáveis foram multados pela Conmebol.
Manifestações contra mouros
Pouco tempo antes do início do jogo de oitavas de final entre Espanha e Marrocos, um grupo de torcedores da extrema-direita espanhola deixou, na porta de uma mesquita em Vitoria-Gasteiz (Espanha), um javali morto acompanhado do recado “vamos caçar os mouros”. Nas redes sociais, ataques islamofóbicos e racistas também ganharam espaço e, apesar de o ataque ter sido motivado pela partida, o histórico entre os dois países é longo.
O Marrocos e a Espanha vivem, hoje, conflitos diplomáticos constantes e tensão na fronteira, já que os dois países compartilham a menor distância entre a África e a Europa, no estreito de Gibraltar e, em terra, dividem a única divisa terrestre entre os dois continentes: Ceuta e Melilla, territórios espanhóis que utilizam o Marrocos como uma polícia para oprimir imigrantes africanos que tentar sair da África rumo à Península Ibérica.
O jogo entre as Seleções dos dois países, inclusive, acontece na mesma semana em que o Congresso da Espanha debate a atuação dos governos de ambos os países no caso mais mortal em fronteiras europeias das últimas décadas, quando, em junho deste ano, centenas de imigrantes tentaram pular a cerca que divide o Marrocos de Melilla e as polícias e ambos os países reagiram com forte repressão, resultando em 23 mortes.
Durante a Idade Média, no entanto, os muçulmanos sofreram com invasões durante a chamada Reconquista Ibérica – marcada pelo seu processo de expulsão dos praticantes do islã da Península Ibérica pelos espanhóis – ao mesmo tempo em que ocorriam as Cruzadas e a Inquisição Espanhola, projetos genocidas que afetaram majoritariamente mouros, judeus e ciganos.
Esse conflito ainda é muito presente no imaginário dos espanhóis como sinônimo de conquista e prosperidade, sendo comemorado todos os anos em 2 de janeiro, considerada data da Reconquista e feriado nacional, evocando um folclore contra os mouros. A Reconquista também é constantemente revivida em séries de época e em discursos racistas anti-imigração da extrema-direita na Espanha, o que pode ter resultado na recente manifestação contra uma mesquita localizada em Vitoria-Gasteiz antes do início da partida entre as Seleções marroquina e espanhola.
Recentemente, a torcida da Inglaterra, que utiliza símbolos colonizadores, como armaduras, capacetes de plástico e armas de brinquedo como fantasia das Cruzadas nos estádios, foi proibida pela Fifa de participar da partida contra os Estados Unidos e de futuros jogos. Os trajes foram considerados culturalmente insensíveis no Catar, que é um país muçulmano.
Na seleção marroquina deste ano, há dois jogadores nascidos na Espanha que optaram por defender o país de seus pais: o goleiro Munir Mohamedi e o lateral-direito – e destaque do time – Achraf Hakimi.
Avanço desconfortável
Apesar de não terem chegado às quartas de final, o avanço das seleções do Japão e da Coreia do Sul nesta Copa do Mundo surpreendeu – não só positivamente – com a liderança do primeiro no “grupo da morte”, deixando para trás a Alemanha, a Espanha e a Costa Rica; e o segundo tendo uma vitória de virada sobre Portugal e vaga garantida com a derrota de Gana pelo Uruguai num jogo que ocorria simultaneamente ao seu.
Com lugar garantido ao menos nas quartas de final e possibilidade de partidas contra o Brasil, no entanto, muitos brasileiros de ascendência asiática-amarela (referente aos países leste-asiáticos) demonstraram apreensão quanto ao aumento de manifestações racistas e xenofóbicas que já vinham acontecendo desde o lançamento do álbum de figurinhas da Copa.
De usuários anônimos nas redes sociais a grandes veículos de jornalismo esportivo, o preconceito disfarçado de piada – responsável por deslegitimar a identidade e as violências em si – circulou em forma de meme e fez com que diversos torcedores amarelos planejassem assistir a esses jogos em específico de casa com medo de que sofressem algum tipo de agressão nas ruas.
Vini Jr. e as dancinhas
Após a vitória do Brasil sobre a Coreia do Sul nas oitavas de finais da Copa do Mundo do Catar, Vini Jr. foi relembrado de um caso de racismo sofrido em outubro deste ano, quando um empresário o comparou a um macaco por comemorar seus gols com danças. Pedro Bravo, em entrevista ao programa espanhol “El Chiringuito”, declarou que “Tem que respeitar, se quer dançar samba, vá fazer isso no Brasil. Aqui, tem que respeitar seus companheiros de profissão e deixar de ser macaco”.
Na entrevista, Vini Jr. desejou “Que a gente possa seguir bailando até a final” e, em depoimento anterior, respondeu ao ataque dizendo que “Fui vítima de xenofobia e racismo em uma só declaração, mas nada disso começou ontem. Há semanas, começaram a criminalizar minhas danças. Danças que não são minhas: são de Ronaldinho, Neymar, Paquetá, Pogba, Matheus Cunha, Griezmann e João Félix; dos funkeiros e sambistas brasileiros, dos cantores latinos de reggaeton e dos pretos americanos. São danças para celebrar a diversidade cultural do mundo. Aceitem, respeitem, ou surtem. Eu não vou parar”.
No mesmo dia em que recebeu o ataque de Bravo, a torcida do Atlético de Madrid também gritou “Vinicius macaco” antes do início da partida.