O Supremo Tribunal Federal decide nesta quinta (02/03) se são legais ou não as provas processuais em que a “suspeita” que levou à abordagem policial foi o fato da pessoa ser negra. A decisão é para um caso individual, mas tem repercussão para todo o sistema criminal.
O processo envolve Francisco dos Santos, um homem negro de São Paulo que foi abordado e revistado pela polícia na rua. A motivação é descrita pela própria polícia no boletim de ocorrência.
Como consta no processo, o PM que fez a abordagem declarou à delegacia que, ao passar por uma rua em seu caminho, “avistou ao longe um indivíduo de cor negra” que “estava em pé junto ao meio fio da via pública” ao lado de um veículo, que, segundo o PM, constituía uma “cena típica de tráfico de drogas”.
O termo “indivíduo negro” foi usado pelo outro policial envolvido na revista ao descrever a situação no boletim de ocorrência. Nenhum dos PMs viu uma transação acontecendo.
Francisco admitiu à Justiça ser usuário de drogas - o que não é mais considerado crime e não é punido no Brasil. Mas ele foi processado e condenado a 7 anos de prisão em instâncias inferiores como traficante por estar com menos de 1,5 grama de cocaína.
A Defensoria Pública de São Paulo, que faz a defesa de Francisco, e entidades jurídicas que participam do processo como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao resultado) afirmam que a abordagem policial foi um caso de perfilamento racial.
“Perfilamento racial é quando forças policiais fazem uso de generalizações baseadas em cor ou raça, sem prestar a atenção em comportamentos que de fato geram suspeição de que há um crime acontecendo”, diz à BBC News Brasil o criminalista Gabriel Sampaio, diretor de litigância e incidência da Conectas Direitos Humanos, entidade que é amicus curiae no processo
Tanto a Conectas quanto outros amici curiae do caso afirmam que a questão central é mais do que uma discussão sobre tráfico ou sobre a política de drogas, mas sim de racismo.
“Esse caso não é um caso que trata de posse de droga, princípios da insignificância, mas de racismo”, afirmou a criminalista Priscila Pamela Cesário dos Santos, diretora do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), em sustentação oral durante o julgamento - que começou na quarta (01/03) e continua nesta quinta.
Uma pesquisa do IDDD em conjunto com o data_labe mostra que negros têm quatro vezes mais chances de serem abordados pela polícia do que brancos.
Sampaio explica que o caso de Francisco é importante pois nem sempre essa motivação racial fica expressa nos autos, como no caso em questão.
A vice-procuradora da república Lindora Araújo, que representou o Ministério Público durante o início do julgamento, negou que a motivação da polícia tenha sido racial e afirmou que os policiais estavam “apenas descrevendo o tipo físico” da pessoa.
O STF deve decidir se a justificativa dada pelos policiais no caso é suficiente para motivar a abordagem - criando um entedimento que pode se tornar parâmetro para outros casos.
A legislação penal e a jurisprudência brasileiras determinam que a abordagem policial para revista pessoal precisa ser motivada por “fundada suspeita”.
“A suspeita precisa ser baseada em fatos concretos, em atitudes. Não se pode legitimar a abordagem com base em características pessoais como cor de pele”, defende Gabriel Sampaio.
O caso é importante pois é uma oportunidade para a Justiça determinar regras para o que é considerado “fundada suspeita”, afirma o criminalista Cristiano Maronna, do centro de pesquisas Justa, que estuda economia política da Justiça.
“Fundada suspeita sempre foi considerado um termo genérico demais”, afirma Maronna. “Não podemos continuar permitindo que a motivação para atuação da polícia seja baseada em elementos subjetivos do que o policial considera suspeito.”
“A oportunidade que existe hoje é criar um parâmetro que coloque ordem e exige uma motivação mais concreta, que realmente apresente regras e parâmetros para orientar a atuação da polícia”, afirma o criminalista.