Jornal Estado de Minas

DIVERSIDADE

Preta, bi e filha de doméstica estreia como deputada em SP

Preta, filha de pedreiro e de empregada doméstica, Thainara Faria (PT), 28, eleita deputada estadual em São Paulo, tinha 21 anos quando estreou na política e se elegeu vereadora em Araraquara. Na primeira sessão, um vereador, referindo-se a ela, ofereceu chocolate a colegas.





Outros ataques racistas e sexistas seriam sua rotina na Câmara. Um político lhe disse que "agora podemos ter escola de samba". Outro, enquanto ela subia ao púlpito, falou "tomara que sua saia arrebente".

Já lhe negaram água no plenário. Primeira vereadora negra da cidade, sofreu perseguição nas redes sociais. "Vagabunda", "Macaca", "Parece uma faxineira", "Cabelo de vassoura", ela lia em comentários.

O primeiro e mais difícil ano do mandato foi também o quinto e último do curso de direito na Uniara (Universidade de Araraquara) e o mesmo em que passou na prova da OAB, antes mesmo de se formar. Cansada dos ataques, decidiu entregar o cargo de vereadora. Quando se preparava para discursar, pessoas da comunidade negra e LGBTQIA+ levantaram um cartaz em que se lia "Resista por nós".

Chorou e desistiu de desistir. "Reconfigurei minhas energias, deixei de olhar para os ataques e passei a me concentrar em quem precisa de mim", diz à Folha.





O apoio LGBTQIA+ veio antes de se assumir bissexual, o que fez na campanha para reeleição como vereadora, em 2020, que ela também venceu.

Se filiou ao PT porque a história de sua vida está ligada a programas sociais do partido.

"Sempre fomos muito pobres e só começamos a comer direito a partir do Bolsa Família", conta. "Meus pais são separados, e minha mãe apanhou de parceiros ao longo da vida. Ela se submetia à violência para dar teto para mim e meus dois irmãos. Só se livrou disso quando comprou uma casa pelo Minha Casa Minha Vida."

Thainara fez faculdade graças ao Prouni, programa criado por Lula em 2004 que oferece bolsa de estudos para alunos de baixa renda em universidades privadas. "Minha faculdade custaria cerca de R$ 48 mil. Como uma família de uma trabalhadora doméstica e de um pedreiro vai pagar isso?"

Aos 15, morou com a família de um tio em São Paulo para fazer o curso Macunaíma de teatro. Queria ser modelo e atriz. "Mas o mercado para pessoas pretas não era legal", diz.





"Desisti dessa ideia quando fui passar o final de ano na minha casa e vi que só havia um saco de arroz e um litro de óleo. Comecei a trabalhar. Fazia trufas e vendia na escola, fui ajudante de carrinho de cachorro quente, trabalhei em loja, em padaria, salão de beleza e, na faculdade, era sacoleira de roupa."

Amiga de Thainara desde o ensino médio, Gabrielle Abreu Nunes, 28, fazia parte do grupo fiel de compradores das trufas. "Ela não tinha que lidar com problemas normais da adolescência, mas sim com dificuldades muito maiores por conta do contexto em que sempre viveu, de periferia", conta a amiga, pesquisadora em ecologia da USP.

Gabrielle lembra que a turma a chamava, brincando, de vereadora. "Ela conversava com todo mundo, professores, alunos, do fundão até a frente, onde se sentava", diz.

O interesse pela política surgiu na época em que sua mãe, além do emprego como doméstica, começou a trabalhar como cabo eleitoral, o que Thainara passou a fazer na adolescência. "Em 2014, decidi que não ia mais balançar a bandeira e entregar panfletos dos outros", conta. "Até porque muitos políticos para os quais trabalhávamos, depois de eleitos, não atendiam o nosso interesse."





Em 2016, quando se candidatou, não tinha dinheiro, mas sabia como fazer campanha. "Fiz por mim o que os outros políticos pagam para que façam por eles", diz Thainara, que passou a contar com o apoio de Edinho Silva, um dos fundadores do PT de Araraquara, hoje prefeito da cidade.

Eleita, ganhou visibilidade para além de Araraquara ao questionar a praxe de se ler a Bíblia em todas as sessões da Câmara.

"Sou católica, quase uma beata. Mas fiz a opção por não ler e expliquei no plenário por quê", relembra. "Eu disse que, em vez da Bíblia, ali a gente tinha que ler a Constituição. A Câmara é a casa do povo, e o povo é ateu, espírita, cristão... Uma religião não contempla a massa", pondera. O vídeo viralizou. "Até o programa da Fátima Bernardes mostrou, foi uma repercussão maluca."

Thainara tornou-se próxima de Erika Hilton (PSOL-SP), primeira preta travesti eleita deputada federal no país. Certa vez, após um evento em Araraquara, elas decidiram ir juntas se tatuar.

"Cada uma agora tem uma girafinha tatuada, a Ruth e a Raquel", brinca Thainara, em referência às gêmeas interpretadas por Glória Pires em "Mulheres de Areia" (1993).





A brincadeira tem um lado sério: "Tatuei uma girafa com cabelo black como reparação a uma outra tatuagem, que fiz aos 16 anos, de uma caveira mexicana com cabelo liso, como eu usava. Isso me machuca, é uma marca do racismo na minha pele".

Na faculdade, fez parte do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. "Ela era muito ativa nas reuniões, eventos e pesquisas do grupo, e fez o seu TCC sobre a legislação a partir do ponto de vista étnico-racial", afirma Edmundo Alves de Oliveira, professor de sociologia jurídica da Uniara, que foi seu orientador.

Thainara foi eleita com 91.388 votos, e sua campanha está no topo do ranking de gastos oficiais dos eleitos para a Alesp.

A arrecadação registrada no TSE foi de R$ 1,4 milhão. O maior doador foi a direção nacional do PT (R$ 503 mil), seguida de José Seripieri Filho (R$ 300 mil), que, em julho de 2020, ficou três dias preso em decorrência de uma operação que investigou pagamentos em caixa dois para a campanha de Serra (PSDB) ao Senado em 2014.





Fundador da Qualicorp, o empresário confessou o crime eleitoral e firmou um acordo de delação homologado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que previa o pagamento de R$ 200 milhões como ressarcimento aos cofres públicos. No fim de 2022, Seripieri emprestou um jato para a viagem de Lula à COP27, resultando em críticas ao então presidente eleito.

Sobre essa doação, que foi tema de reportagens, Thainara diz: "As pessoas tentam tornar uma anomalia algo que acontece em várias campanhas e ninguém questiona. Faço parte de um grupo que foi atrás de arrecadações e sou grata por isso. Todo o dinheiro para a minha campanha foi arrecadado dentro da legislação".

Abilio Diniz, dono do Carrefour Brasil, também está entre os doadores de sua campanha, com R$ 80 mil.

Na Alesp, Thainara afirma estar "muito disposta a dialogar com o governo Tarcísio ". "A minha vontade não é só gritar, brigar e apontar o que está errado, ainda que eu vá fazer isso."

Sua expectativa é que o governador se descole do bolsonarismo. "O Tarcísio foi do governo Dilma, não podemos esquecer, então ele tem capacidade de dialogar."

Segunda ela, pautas antirracistas e LGBTQIA+ "são fundamentais", mas pretende partir dessa perspectiva para outras questões. "Quero falar desse lugar de mulher, preta, bissexual no debate sobre o desenvolvimento econômico e urbano, a segurança, a saúde e a educação."