A Lei Áurea completa 135 anos neste 13 de maio e, até hoje, deixa suas marcas – quase nada positivas. Apesar de ser um marco para a luta abolicionista da época, ainda é símbolo de um movimento negligenciado pela história hegemônica do Brasil e não concedeu, de fato, liberdade para os povos escravizados. É o que dizem seus descendentes que, até hoje, não se sentem cidadãos livres pelo simples fato de serem negros.
“O racismo é perene. No passado, período anterior à abolição do trabalho escravo, ele justificava a escravização. Hoje, ele justifica a discriminação, a exclusão dos bens e da riqueza coletivos produzidos por todos”, explica Marcos Cardoso, analista de Políticas Públicas da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), filósofo mestre em história e um dos maiores nomes da militância negra no Brasil.
Para Marcos e para muitas outras pessoas, a abolição da escravidão não significou liberdade para os povos africanos no Brasil, já que o controle social sobre eles se manteve a partir da ausência de reformas estruturais que pudessem integrá-los à sociedade brasileira.
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“O que é liberdade dentro desse contexto? Uma vez que a abolição diz que a escravidão acabou, há liberdade, de fato, no pós-abolição? Quando esses corpos foram ‘libertos’, já se criava outra estratégia de mantê-los escravizados, porque a Lei abandona, não prevê nenhum tipo de amparo ou ressarcimento, não reconhece a humanidade das pessoas que foram libertas e, até hoje, isso reverbera. Está livre, mas não está livre como um ser humano”, comenta Jamile Cazumbá, multiartista de Salvador.
Desigualdade
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população brasileira é negra (incluindo autodeclarados pretos e pardos). Apesar disso, a proporção de pessoas pobres no país é de 18,6% entre os brancos, enquanto é praticamente o dobro entre os pretos (34,5%) e pardos (38,4%), segundo a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” de 2021.
Sem a concessão de terras ou a oferta de trabalho digno – como foram dados aos imigrantes que substituíram a mão de obra dos escravizados –, muitas pessoas foram morar nas ruas, dando origem às favelas e às comunidades periféricas. “O 13 de Maio seria um dia de comemorar uma libertação, uma euforia, mas acabou que, no eterno 13 de maio, a gente viveu uma falta de suporte, uma falta de estrutura, uma falta de dignidade mínima. O que foi ofertado, por exemplo, para os imigrantes – a população que veio embranquecer o Brasil – não foi o mesmo para a população negra”, explica Etiene Martins, pesquisadora, militante do movimento negro e colunista do DiversEM.
“A Lei Áurea, nesse aspecto, não serviu para nada. Ela é apenas uma fachada, uma farsa histórica, e um processo colonizador que permanece até hoje: a elite brasileira não tem projetos para integrar brasileiros negros à sociedade brasileira. Grande parte dessa população está encarcerada, tem as piores condições de vida, não tem acesso a educação de qualidade”, enfatiza Marcos.
Modernização x exclusão
Com a negligência das elites, os rastros deixados pelo descaso com a população negra escravizada respingam nos dias atuais – de maneiras diferentes, mas com impactos ainda muito fortes na qualidade de vida de pessoas negras.
“O Brasil continua se modernizando, mas faz isso excluindo a grande maioria da sua população desse projeto. Ou seja, é uma modernização extremamente conservadora, excludente, colonizadora e atrasada. Apesar de o país ter uma sociedade multicultural e diversa, nem todos podem usufruir das benesses culturais e econômicas produzidas nesse processo histórico do Brasil”, afirma o militante. “Criou-se, no país, uma mentalidade escravocrata e colonialista de enxergar os negros e as negras como escravos. O movimento negro contemporâneo tenta desconstruir e desnaturalizar esse imaginário”, complementa ele.
Para Jamile, as consequências de todo esse processo lhe garantem muitas inseguranças. “Ainda não nos sentimos livres. Eu, como um corpo negro, que vive no século 21, no ano de 2023, ainda não me sinto livre para existir dentro da cidade; não me sinto livre com a Polícia – que deveria me proteger – perto de mim; não me sinto livre no meu processo de aprendizado dentro da academia, dentro da arte e, inclusive, dentro do meu trabalho”, diz.
As inquietações da multiartista são fundadas, para além do passado escravista do Brasil, pela relação patriarcal que cerca as relações trabalhistas de mulheres negras. “A gente vive numa sociedade capitalista em que a população negra ainda ocupa cargos com sub-salários. A senzala moderna é, hoje, o quarto da empregada, e a gente consegue ver isso, por exemplo, pela dificuldade que foi aprovar a PEC das domésticas, justamente porque quem faz esse trabalho somos nós, mulheres pretas descendentes das mulheres africanas que foram escravizadas”, conta Etiene.
“Até hoje a gente vê essa hierarquia escravista na nossa sociedade, que ocasiona a nossa morte prática e simbólica: a morte dos nossos conhecimentos e saberes ancestrais, a morte das nossas religiões de matriz africana, que são violentadas e demonizadas até hoje. A gente consegue ver nossos corpos sendo expulsos de um avião mesmo quando pagamos a passagem como qualquer outra pessoa. Matam os nossos corpos como se fôssemos baratas”, completa Etiene.
Esperança e luta
São trabalhos como os de Jamile, no entanto, que dão esperança de um futuro melhor para a comunidade negra brasileira, de acordo com Marcos. “Temos todo um processo de articulação da vida, uma reconstrução da cultura africana no território brasileiro: as religiões de matriz africana resistindo à intolerância; a qualidade negra brasileira sendo apropriada pelo país inteiro – sem o devido retorno –; a juventude negra continuando a produzir com sua radicalidade poética, mesmo sendo vítima do aparelho de segurança do Estado; as políticas públicas reivindicando cotas, sobretudo para a juventude que parou no Ensino Médio ter acesso ao Ensino Superior”, pondera ele.
Arte e debate
Apesar das conquistas recentes, o dia a dia ainda se mostra campo de batalha para essa população. “Acho que, no ponto em que estamos, é importante haver essas reparações históricas, mas não podemos negar que, hoje, há outras formas contemporâneas de ocupar, de colonizar e de escravizar. Por isso, a luta é constante”, afirma Ermi Panzo, artista que compõe, com Jamile, o elenco da peça “Babilônia Tropical - A Nostalgia do Açúcar”.
Com o devido cuidado narrativo, o espetáculo põe em xeque o Brasil escravocrata e racista e fala de Pernambuco do século XVII, um estado brasileiro que, assim como Babilônia, foi palco de disputas de poder, sofreu diversos ataques e invasões e se destacou pela agricultura.
“A obra é provocativa e não apresenta as barbáries da escravidão. Ela traz uma discussão: É necessário ressuscitar um tempo de engenho? Se for necessário, então que se tragam as reflexões de como ela atinge, hoje, nossa sociedade, e como os negros gostariam de se sentir dentro desse cenário. Então, é preciso que a branquitude passe a ter um olhar de como as pessoas negras pegam essa cena e encarnam isso dentro de um cenário ‘revertido”, explica Ermi.