O futuro do único centro comunitário islâmico da Indonésia para mulheres trans está em risco depois que sua líder, Shinta Ratri, morreu em fevereiro — e o governo diz que não pode apoiá-lo. Há 63 mulheres trans que frequentam regularmente o centro comunitário Al-Fatah, onde elas têm um espaço para orar, aprender o Alcorão (livro sagrado do Islã), capacitar-se ou simplesmente socializar sem serem julgadas por quem são.
Rini Kaleng é uma delas. Logo após acordar, ela coloca maquiagem e sua peruca preta favorita antes de pegar sua bolsa e seguir pelas ruas da cidade histórica de Yogyakarta. Rini caminha quilômetros e quilômetros, tocando música seu carrinho de som e cantando para ganhar a vida.
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Após ela dizer que é uma mulher trans, os pais e nove irmãos mais velhos aceitaram sua identidade. Agora, ela é reconhecida pelas pessoas na rua, que a veem cantando e dançando. "Posso dizer que sou uma celebridade aqui", ri.
Rini ouviu pela primeira vez sobre o centro islâmico para mulheres trans por meio de uma amiga que também queria estudar religião. E descobriu ali toda uma comunidade de mulheres como ela, que compartilhavam a mesma paixão. Nas mesquitas, Rini diz que costumava receber olhares estranhos quando ia rezar. "Não éramos aceitas. Então fui para o centro de Shinta Ratri", diz ela.\
"Muitos centros islâmicos não aceitam transgêneros", diz Nur Ayu, zeladora do centro. "Aqui, somos livres... livres para vir como homem ou mulher, como nos sentirmos mais confortáveis." Shinta Ratri foi uma das fundadoras do centro comunitário Al-Fatah.
Renomada ativista e líder do centro desde 2014, Shinta colaborou com muitas organizações sem fins lucrativos para promover os direitos das pessoas trans na Indonésia. Em março, ela morreu aos 60 anos de um ataque cardíaco, três dias após ser internada no hospital. Sua perda é profundamente sentida pelas frequentadoras do centro.
Nur descreve Shinta como uma "luz guia" e uma "irmã" e diz que, sem ela, o centro parece "vazio e desolado". A morte de Shinta também levantou dúvidas sobre o futuro do centro comunitário. O prédio é propriedade da família da falecida líder — e os parentes pediram ao Al-Fatah para se mudar.
"Devemos ser capazes de continuar sem Shinta e ser independentes", diz Nur. YS Albuchory, secretária do centro islâmico, explica que receberam apoio de amigos da comunidade e organizações de direitos humanos, tanto local quanto globalmente. Mas a aceitação da comunidade trans no ambiente religioso da Indonésia é limitada.
O estado não tem sido ativamente hostil e permitiu sua existência, dizem as frequentadoras, mas não fornece apoio direto. Waryono Abdul Ghafur, diretor de centros islâmicos do Ministério da Religião da Indonésia, diz estar ciente da situação do centro. Argumenta, no entanto, que as autoridades não podem apoiar o centro, pois ele não é considerado um centro islâmico legítimo, segundo os regulamentos do estado.
Em um contexto mais amplo, o estado "apoia todas as atividades positivas", disse ele em entrevista por telefone à BBC News. "As pessoas querem orar, por que elas deveriam ser recusadas?", diz. Mas a realidade é que a sociedade "ainda rejeita o status social e religioso das pessoas transgênero", continua ele. O Ministério da Religião nunca esteve em contato direto com o Al-Fatah ou facilitou qualquer uma de suas atividades, segundo as organizadoras.
Oração
Rully Mallay, outra líder do centro, diz que o Al-Fatah é grato por "qualquer forma de legalidade que nos é concedida". Ela tem esperança de que um dia a comunidade transgênero será mais aceita em um país tão diverso quanto a Indonésia. Essa esperança motiva ela e seus amigos a manter o centro funcionando.
"O Islã deve ser capaz de fornecer espaço para que qualquer pessoa possa adorar livremente segundo os caminhos da religião", insiste Rully.
"Acho que a proteção do estado é muito boa. E estamos otimistas de que, no futuro, o país nos apreciará, como parte de Bhineka Tunggal Ika ."
O desafio agora é encontrar um novo local — e o dinheiro para financiá-lo. E precisa estar em um bairro amigável. Os atuais vizinhos em Yogyakarta foram receptivos. Uma delas é Rosidah, membro da comunidade local que não é uma mulher trans. Ela soube do centro quando integrantes lhe pediram informações. Agora, ela dá aulas lá há mais de um ano.
"Estava ocupada, mas como estava muito curiosa, fui visitar", diz ela. Em seguida, Shinta Ratri perguntou se ela lecionaria no centro regularmente como voluntária. Rosidah concordou após sua família concordar. "Tinha um pouco de receio delas, confesso, mas depois que vim para cá, depois de ensinar aqui, vi que essas pessoas são muito descontraídas, principalmente Shinta.
Estavam sempre muito pacientes, nunca estavam zangadas, apenas sorridentes", lembra ela. Teguh Ridho é outro voluntário que ensina Iqra no centro, um nível básico para a leitura dos textos sagrados. Ele ficou surpreso com a determinação das alunas em vir de longe para as aulas. "Embora tenhamos apenas uma hora para aprender o Alcorão, elas vieram de longe."
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Mas o começo não foi fácil. Albuchory relembra um incidente em 2016, quando um grupo extremista islâmico invadiu o centro e fez ameaças. "Eles disseram que para onde quer que nos mudássemos, iriam nos perseguir, a menos que demonstrássemos arrependimento e voltássemos a ser homens."
Foi Shinta Ratri quem lutou para o centro permanecer aberto com a ajuda de várias organizações sem fins lucrativos — até que finalmente receberam garantias de segurança da polícia local. Albuchory diz que as vidas das mulheres trans que frequentam o centro melhoraram, ao assumirem responsabilidades morais informadas por ensinamentos religiosos.
"Depois de entrar na escola e voltar a conhecer a Deus, a vida fica um pouco mais organizada. E a comunidade vira uma segunda família", conta. Por isso, ela espera que o centro comunitário continue a oferecer aulas de religião e orientação para mulheres trans como ela, que desejam se aproximar de Deus. "Ainda preciso de Deus. Não posso continuar sem orar. Tenho certeza de que outros amigos transgêneros têm suas próprias motivações."