‘Aquendar’ — também conhecido como tucking — é uma prática usada entre as travestis, cross dressers, drag queens e mulheres trans para esconder o órgão genital. O ato vai muito além da estética, tratando-se também de uma forma de sobrevivência, principalmente no país que mais mata transgêneros no mundo.
Na ‘aquendação’, o órgão genital é puxado para trás, entre as nádegas. A prática é feita de forma bastante rudimentar, com a utilização de colas, fitas adesivas e barbantes, o que pode causar dores e ferimentos:
“Eu aquendava desde o início da minha transição, tive problemas de assadura, machucados que feriam. Usava diariamente, ia à escola das 7h da manhã até as 12h com aquendação. Evitava muito ir ao banheiro e beber água para não arriscar ter que ‘soltar’ e acabar me machucando.” Esse é o relato de Melina Queiroz, modelo de 22 anos que protagonizou a campanha da marca de lingeries para mulheres trans, a Trucss.
Costurando sonhos
Silvana Bento, enquanto trabalhava em hospitais particulares de São Paulo, notou padrões recorrentes: mulheres transgênero realizando apenas cirurgia nos rins ou hemodiálise.Intrigada, Silvana decidiu investigar, realizando pesquisas entre as pacientes e o corpo médico e foi aí que descobriu a técnica que estava por trás dos procedimentos:
“Na época, imaginei que seria por essa questão de as meninas trans não poderem usar o banheiro feminino. Sinceramente, é por isso também, né? Porque não é só a questão de elas poderem o sim ou não usar o banheiro, mas também por estarem aquendadas”, disse Silvana.
Um fato em específico encorajou Silvana a fazer algo a respeito da situação. “Me deparei um dia com uma mulher trans chamada Luiza, que estava na fila de transplante de rim. Tinha mais de 30 anos e se aquendava desde o início da transição. Luiza faleceu do meu lado, quando eu estava prestes a infundir uma bolsa de sangue nela.”
Mesmo sem saber costurar e inexperiente no ramo empresarial, Silvana fundou a Trucss, marca de peças íntimas feitas especialmente para mulheres trans, em 2017. A empresa está inovando o mercado de lingerie com suas peças e em abril chamou a atenção nas redes sociais por ter sido dona do primeiro comercial destinado ao público transgênero a ser exibido na Record TV.
“É maravilhoso você ter a consciência de que você é a primeira mulher trans a aparecer em um comercial da Record, uma emissora totalmente conservadora. Foi incrível”, disse Melina, que protagonizou a campanha.
Silvana relatou que a escolha da emissora foi proposital: “No início, as costureiras, as primeiras que encontrei, não queriam fazer as peças, por serem destinadas ao público trans e a maioria delas era evangélica [...] Por isso, escolhemos essa emissora, para mostrar para essas pessoas que se recusaram fazer minhas peças que a gente continuou, né? Temos que dar voz às meninas trans e nada melhor do que fazer esse burburinho na Record”.
No Brasil, a primeira campanha publicitária feita com uma mulher trans aconteceu em 2015, com a Lola Cosmetics, ou seja, demorou quase 10 anos para que uma mulher trans protagonizasse um comercial em TV aberta novamente.
Cuidados ao ‘aquendar’
Conforme o projeto internacional Trans Murder Monitoring (TMM), que tem em vista monitorar o número de assassinatos de pessoas trans no mundo, de 2008 a setembro de 2022, o Brasil é o primeiro colocado, responsável por 37,5% das mortes. Por isso, aquendar tornou-se como um alicerce para a sobrevivência, além de ajudar com a disforia de gênero.
A disforia de gênero é uma condição em que uma pessoa experimenta um desconforto significativo e persistente em relação ao seu gênero atribuído ao nascer. Essa condição ocorre quando a identidade de gênero de uma pessoa difere do sexo biológico com o qual ela nasceu.
Por esses motivos, aquendar tornou-se algo quase que necessário para mulheres trans, entretanto, alguns cuidados são necessários para evitar alguns problemas de saúde.
“Por dar trabalho, aquendar e desaquendar, as pessoas costumam segurar a urina e beber menos água. Isso é ruim porque leva à desidratação, a urina parada, independente de gênero, é um fator que leva à infecção urinária. Eventualmente, qualquer bactéria que às vezes chega na bexiga, encontra ali um ambiente ideal para crescer, multiplicar e causar infecções”, alerts Marcelo Magalhães, urologista especializado em saúde LGBTQIA+.
Para evitar lesões na pele, Marcelo recomenda o uso de fitas menos agressivas ou hipoalergênicas. Além disso, é importante evitar roupas muito apertadas, por dificultarem a circulação sanguínea e acumularem umidade, que podem causar balanite, que são infecções do prepúcio e da glande, causada normalmente por fungos.