Danilo Candombe, quilombola de 38 anos nascido no Açude, na região da Serra do Cipó, em Minas Gerais, está com uma campanha de financiamento coletivo para o lançamento de seu livro “Sou eu minha estrela maior”. A obra, chamada de “quase biografia” pelo autor, conta a trajetória de vida de Danilo e de sua relação com a masculinidade e o patriarcado da branquitude.
No livro, o quilombola candombeiro busca refletir sobre a sua percepção traumática de masculinidade negra, ao ter esbarrado com relacionamentos interraciais tóxicos e experiências nem sempre seguras para si e para as comunidades negra e quilombola do Açude. Na obra, também fala de suas experiências artísticas e culturais, comentando sobre os princípios e bases que o formaram como ser humano individual e subjetivo.
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Danilo Candombe saiu do Quilombo do Açude aos 3 anos de idade por questões de saúde e foi morar em Belo Horizonte com sua mãe em uma casa de brancos, onde vivia em um “quarto de empregada”. Conforme crescia, passou a questionar por que determinados comportamentos seus eram punidos com maior severidade do que de seus amigos brancos.
“Fora do quilombo, próximo de pessoas brancas de classe média, eu sempre tentei agir da mesma forma que elas. Mas nunca entendi o porquê de minhas atitudes serem vistas e cobradas de forma diferentes, ou até mesmo condenadas com muito mais peso. E não é me fazer de vítima, porque eu erro, e erro muito, mas sempre vi ao meu redor erros até piores sendo cometidos por homens brancos sendo tratados de forma bem diferentes”, explica Danilo.
Para o psicólogo Cláudio, as relações que permeiam a vivência de homens negros precisam ser entendidas para além das questões de gênero, entrando na discussão da racialidade.
“Colocar essa discussão em debate é extremamente importante, principalmente dando enfoque às masculinidades negras, porque a gente vê, muitas vezes, essa discussão pensando numa masculinidade branca, mas os homens têm especificidades que são marcadas pela raça que também precisam ser compreendidas”, explica Cláudio.
No caso de Danilo, que precisa “apertar o botão de ‘reset’” sobre suas percepções sobre a própria existência, a desconstrução e a reconstrução passam por lugares dolorosos.
“Quando ele chega na cidade, acaba tendo uma dificuldade, uma dor. Como foi para o Danilo sair do seu lugar, que vive de uma forma tradicional, para viver a experiência da vida na cidade grande sem estar preparado para isso e tentando lidar com o sucesso dos seus colegas e amigos que cresceram com ele, mas nunca conseguindo fazer como eles? Como fica a vida de um menino nessas condições?”, questiona Leo Gonçalves.
Danilo reforça a importância de se repassar as experiências para que outros possam se identificar e se desconstruir.
“Pessoas pretas no Brasil não precisam de muito tempo de vida para ter histórias para contar. Somos história bem antes de nascer: somos desumanizados; libertaram nossos corpos e fizeram um sistema no qual nós mesmos acorrentamos nossas mentes, nos fazendo acreditar que somos resto”, conta Danilo.
“Me analiso e me observo muito, e sei que boa parte das minhas atitudes consideradas machistas vêm por tentar me inserir em um universo que não pertence à minha realidade e a pessoas da minha cor. Quero me expor porque sei que existem mais homens pretos que precisam apertar esse botão de ‘reset’ e reconstruir a masculinidade para parar de dar força a esse machismo, que tem nome e sobrenome: patriarcado branco”, completa o quilombola.
Planejamento
“Sou Eu Minha Estrela Maior” é organizado por Leo Gonçalves, escritor que trabalha há mais de 20 anos com literatura e tradução, e comentado por Cláudio Patrício, psicólogo formado pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que já pesquisa sobre masculinidade negra há algum tempo.
“A narrativa da vida do Danilo me interessou muito e reconheci, nela, o que chamamos de marronagem, que é a ideia de fuga e união afrodiaspórica em movimento para chegar a um lugar de se repensar e de se recriar a sua estadia no mundo. E aqui, a gente não vê somente uma nova dinâmica na relação da cultura branca com a cultura negra, mas também um embate na cultura de uma sociedade da cidade grande com o quilombo”, declara Leo.
“É um momento de dar voz aos homens negros que, dentro de todas as categorias sociais, é uma das cadeiras que menos tem capacidade de falar por si própria. Os homens negros sempre são calados, então, é muito interessante pensar a biografia de um homem quilombola que veio para a metrópole”, complementa Cláudio.
O objetivo do financiamento coletivo é custear a primeira parte do projeto do livro, que é o processo de escrita. O plano é que o livro seja finalizado em agosto desse ano e impresso até janeiro de 2024. A campanha de arrecadação teve início pela plataforma Catarse, mas com baixa adesão, Danilo e sua equipe passaram a receber apoio financeiro por meio do PIX. A chave é o número de telefone (31) 98343-1264 e Danilo recomenda colocar o e-mail do doador na descrição da transferência.
As expectativas são de que o livro e a história de Danilo se tornem referência em discussões sobre masculinidade negra e que, além de auxiliar na expressão de mais homens pretos, torne-se semente para uma organização coletiva entre quilombolas.
“Espero que o livro chegue ao máximo de pessoas possíveis, e que não seja mais um material de apoio para a classe média branca. Não quero que esse livro seja a Bíblia dos ‘esquerdomachos’. Quero que seja uma semente para nós, pretos”, explica o quilombola.
“Também é um livro para mim mesmo. Como quilombola, acredito que mais irmãos e irmãs vão se encorajar e contar suas histórias. Expor para se tornar semente e referência. Quero que o povo preto se organize como os irmãos indígenas vêm se organizando: etnias diferentes, mas juntos pela luta de todo um povo originário”, completa ele.
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