Raul tem quatro anos de idade quando Atena lhe aparece pela primeira vez. É final dos anos 1960, ele está no pátio da escola, na cidade cubana de Cienfuegos, e se vê cercado por colegas que o acossam com gritos de "viadinho".
A deusa afasta os pequenos agressores com um sopro e revela ao menino loiro de traços delicados que ele não é Raul, e sim a princesa troiana Cassandra. Leia a "Ilíada", lhe diz Atena, "você vai compreender".
Na mitologia grega, Cassandra é uma figura sombria: após atrair a atenção de Apolo e receber o dom de prever o futuro, a moça rejeita as investidas do deus, que a pune determinando que ninguém jamais acreditará em suas profecias. Cassandra vê a queda de Troia e, mais tarde, a própria morte, mas não tem como proteger ninguém.
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Gala, contudo, contorna o expediente gasto da ficção como fuga ao dar a Raul uma fantasia tão terrível e insolúvel quanto sua própria vida.
O destino de Raul, afinal, não é promissor. Vivendo sob a repressão política e simbólica do regime de Fidel Castro e as ameaças do machismo, a criança descobre na poesia lírica um espaço de acolhimento e veste escondida as roupas da mãe.
Sua sorte parece tão previsível que os deuses insistem que Raul/Cassandra se entregue logo. Quando conclui os anos escolares, Apolo propõe: "Nada de universidade, nada disso, por que atrasar seu retorno ao infinito?".
A nova Cassandra sabe que vai morrer, ainda jovem, na condição de soldado na intervenção em Angola --Cuba apoiou militarmente o movimento de libertação do país, de 1975 a 1991--, e a experiência no desterro africano é agravada pela hostilidade dos companheiros, pela violência da guerra e da natureza e, sobretudo, pelo abuso sexual.
A experiência é marcada também pela presença ostensiva de divindades em que convergem as mitologias grega e iorubá: Apolo se disfarça de Xangô e expõe sua ira; Atena é Obatalá e ajuda a cavar a cova sem fundo de Cassandra.
Esse sincretismo improvável evidencia, de modo inventivo e potente, a ambiguidade cultural do colonizado. As Erínias, entidades gregas vingadoras de crimes, aparecem como uma banda de rock que entoa uma canção sobre os caixões que abrigarão os soldados, enquanto os espíritos dos mortos formam um redemoinho em volta da cabeça da protagonista, "como um enxame de mosquitos".
"Me Chama de Cassandra" é narrado em primeira pessoa por Raul, na simultaneidade de temporalidades própria a uma profetisa. Lembranças, presente e futuros pressagiados se confundem, ao mesmo tempo que "tudo é por enquanto" e a intensidade dos momentos é minada pela perspectiva do fim.
É também por causa da sombra da morte que a personagem expressa o desespero inútil por encontrar o próprio desejo nesse corpo sobre os quais se projetam os desejos de tantos outros.
O romance de Gala é povoado por personagens que expõem a confluência de dor, desejo e violência. Da mãe que veste o filho com as roupas da irmã morta, alimentando as fantasias de ambos, ao capitão que estupra o soldado para sanar a saudade da esposa, nenhum gesto cruel traz em si um diagnóstico simples.
Mesmo a coibição de inspiração soviética ao "diversionismo ideológico" da literatura "burguesa" é contrabalançada pela figura de Liudimila, russa que se firma como a interlocutora possível do menino.
"Me Chama de Cassandra" está longe de ser um romance perfeito. Gala muitas vezes pesa a mão na denúncia à violência prática e simbólica do regime de Fidel e, em outras, resvala na pieguice ao tratar dos conflitos inerentes à transexualidade de Raul. A edição brasileira também merecia cuidado maior (há erros bobos como chamar a deusa de "Atenas").
O livro, porém, compensa essas fragilidades ao trazer para sua estranha composição formal - na fratura invisível entre realidade e fantasia; na confusão de temporalidades; no insuspeito bom humor da voz narrativa- o absurdo do destino de sua protagonista.
Serviço
ME CHAMA DE CASSANDRA
Preço R$ 49,90 (248 págs.); R$ 34,90 (ebook)
Autoria Marcial Gala
Editora Biblioteca Azul
Tradução Pacelli Dias Alves de Sousa
AVALIAÇÃO Muito bom