Julia Risso fala com clareza e pausadamente. Sua voz demonstra seus anos de treinamento antes de se tornar locutora.
Ela diz que sempre se desvia do assunto durante as conversas e escolhe com cuidado cada uma de suas frases. E está convencida de que odeia a palavra "inclusão" – ela prefere "socializar".
Risso tem 28 anos de idade. Ela nasceu com uma má formação genética na coluna que a transformou em uma "pessoa baixinha", como ela diz, com ternura.
Ela mora em San Miguel del Monte, a cerca de 110 km da capital argentina, Buenos Aires. Lá, trabalha como professora de teatro.
A jovem se autodefine como "ativista disca" (de "discapacitada", ou "deficiente" em espanhol). Ela apresenta o podcast Les otres, está prestes a publicar um livro de ficção autobiográfico e, no mês de abril, apresentou uma palestra na 47ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires sobre como romper as barreiras sociais que aprofundam a desigualdade.
Ela contou sobre sua vida e seu trabalho à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Leia abaixo a entrevista.
BBC News Mundo - Uma pessoa é deficiente ou tem deficiência?
Julia Risso - Antes, eu acreditava que era algo que se tinha, mas hoje acredito que se é. Hoje, sou uma pessoa deficiente. Embora haja algo de politicamente correto muito forte de que devemos falar "pessoa com deficiência".Acho que sou uma pessoa incapacitada pela sociedade.
Não sou eu que tenho deficiência. Estão me incapacitando quando instalam um banheiro e eu não entro ou o vaso sanitário é alto para mim. Ou quando vou ao supermercado, a gôndola mede 1,80 metro e a erva-mate que eu gosto está em cima de tudo.
E a sociedade não está incapacitando somente a mim, mas também a uma pessoa mais alta que não consegue levantar seus braços ou outra que carrega uma criança e não pode alcançar alguma coisa.
BBC News Mundo - E qual você diria que é a diferença entre ter deficiência e ser deficiente?
Risso - A identidade. Quando alguém decide que é deficiente e percebe que isso irá acompanhá-lo por toda a vida, aquilo se torna uma característica, como tantas outras.
Sou uma mulher, sou branca e também sou deficiente.
De qualquer forma, acredito que o mais difícil é que a sociedade entenda que o problema, na verdade, são os outros, não somos nós.
Para falar de forma mais teórica, o modelo social da deficiência entende que a deficiência é uma construção social, não é um tema individual, não é um problema que exige que se cure uma pessoa.
O entorno é que precisa se adaptar para que essa pessoa possa viver com a maior autonomia possível.
Mesmo assim, acho que este conceito não encerra a discussão sobre a ideologia da normalidade.
BBC News Mundo - A deficiência gera medo na sociedade?
Risso - Gera perigo e medo. Acho que a primeira coisa que as pessoas pensam é que não sabem o que fazer.
Uma mulher de 42 anos me escreveu no Instagram para contar que estava tentando ter um filho ou uma filha e seu médico indicou que, se decidisse ter um bebê, ele poderia ter risco de nascer com deficiência. Ela se assustou muito.
E eu disse: "Que forma de assustar uma pessoa que decide ter um filho, que o medo seja que ele tenha deficiência!"
Depois achei que o médico talvez tivesse razão... mas logo lembrei que minha mãe me teve com 32 anos, não tinha mais de 40.
Quem tem risco de ter deficiência? Até certo ponto, todos nós temos risco. Talvez todos nós cheguemos a ser velhos e, quando isso acontecer, o corpo se deteriore.
Existem pessoas que, do nada, têm uma doença incapacitante e acabam usando cadeira de rodas. A vida tem uma porção de circunstâncias que fazem você ficar deficiente em algum momento.
Quem tem medo de ser deficiente não deve nascer, pois a condição humana é frágil.
Existe um medo de que discriminem esse filho ou filha. Penso no meu pai, que tinha pavor de que me tratassem mal, que me enganassem. Antes me aborrecia, mas agora entendo o que ele sentia.
Minha mãe precisou educar não só a mim, mas também ao meu pai e a todos os demais para que percebessem que estavam criando uma menina autônoma.
BBC News Mundo - Existem normas dentro da deficiência?
Risso - Sim, uma porção delas. Não sair de noite, não beber álcool. Muitas pessoas me olhavam espantadas. E me perguntavam: "Você não toma remédios?"
Em 2018, eu estava dançando com minhas amigas e nos divertíamos em uma festa gay friendly, que normalmente é algo mais aberto, quando veio um menino que me abraçou e me deu parabéns porque eu fui dançar naquele lugar. Fiquei estupefata, petrificada.
Ali, eu entendi que a mensagem era: "Parabenizo você porque, teoricamente, você não teria que estar aqui. Não há motivo para comemorar."
Existe muito policiamento sobre as comemorações.
BBC News Mundo - O que acontece com o desejo da pessoa deficiente? Também existem normas?
Risso - Eu acho que, nos lugares de diversão, de entretenimento, onde você vai passar momentos agradáveis, sempre parece que estamos pedindo permissão.
A acessibilidade nos lugares de diversão não existe. Beber uma cerveja em um bar que tem aquelas banquetas muito altas... eu preciso de uma escada. Imagine uma pessoa que usa cadeira de rodas, ela usa a mesa de teto.
Não é só a acessibilidade física, mas também a de atitudes.
E, com relação ao desejo sexual, a norma é ser heterossexual.
BBC News Mundo - Uma pessoa deficiente pode exercer sua sexualidade?
Risso - Eu gosto de falar de desejo e sexualidade separadamente, porque a sexualidade não é entendida apenas como pessoas que querem fazer sexo com outras ou com elas próprias, mas como um conceito multidimensional.
Ela tem muitos aspectos, como a forma como nos exibimos, como nos vestimos e como decidimos nos mostrar.
Geralmente, surgem comentários de que não se espera que a pessoa tenha esse poder de escolher, de autonomia. E, como não temos tanta representação, não existem pessoas com deficiências como modelos de roupas, nós não nos vemos refletidos.
Eu não tenho problemas em dizer que a estética me interessa. Gosto de ir ao cabeleireiro, maquiar-me todos os dias, estar arrumada. E muitas pessoas interpretam que eu quero dissimular a deficiência. É como um mandamento.
Existem também pessoas com quem você decide ter um vínculo sexual e afetivo e que acreditam que estão fazendo um favor, como uma ideia de que estão fazendo boas ações por terem relações sexuais conosco.
Ou existe uma visão de que somos muito frágeis. Acho que é preciso expor um pouco essas pessoas ao ridículo.
No exercício da sexualidade, existem também coisas talvez mais banais, mas que surgem na nossa vida cotidiana. Como o que repete Florencia Santillán, outra ativista "disca": "Alguma vez você viu um motel com rampa?"
Isso também demarca onde as pessoas devem estar.
BBC News Mundo - O que é o "pornográfico inspiracional" que você menciona no seu podcast?
Risso - É um belo conceito que assusta muito as pessoas.
Quem o mencionou pela primeira vez foi Stella Young [1982-2014], uma ativista australiana que deu uma palestra TED chamada "Não sou sua fonte de inspiração, muito obrigada". Ela diz que as pessoas "coisificam" as que têm deficiência sem o consentimento delas, para que fiquem motivadas.
Basicamente, para acreditar que a sua vida é menos infeliz [em comparação com a da pessoa com deficiência].
É como quando dizem: "Parabéns por seguir adiante, apesar de tudo". Ou naquelas imagens que mostram uma pessoa sem as pernas e se lê, embaixo: "E você se queixa porque tem sono de manhã".
Você acha que essa pessoa se queixa o dia inteiro porque não tem pernas?
Sim, eu reclamo às vezes porque não chego a lugar nenhum com a minha altura, mas não estou todo o tempo me queixando disso porque me aborrece. Quero reclamar de outra coisa.
Mas as pessoas precisam olhar para casos de deficiência para não se sentirem tão mal. E isso vem da necessidade de acreditar que estamos todo o tempo sofrendo e renegando nossa deficiência.
Como na representação dos deficientes nas séries de TV ou nos filmes, onde geralmente existem dois opostos.
Um é o renegado que odeia tudo, mal humorado, como o menino em cadeira de rodas da série Sex Education.
Acho muito engraçado porque, nesta série, todos fazem sexo como se fossem selvagens e, na cena do menino na cadeira de rodas, os dois ficam oito horas chupando a orelha. Por que não mostram o menino da cadeira de rodas fazendo sexo selvagem? Isso seria visibilidade.
No outro extremo, está o personagem do anjo que não tem desejo sexual.
A sociedade gosta muito de romantizar a deficiência porque não quer combater a desigualdade. E romantizar também é uma forma de excluir.
BBC News Mundo - Nós vivemos em uma sociedade inclusiva?
Risso - Odeio a palavra inclusão. Não gosto porque está na moda. O que faz esta palavra, na verdade, é perpetuar que fiquemos fora do sistema.
Se eu preciso incluir é porque alguém está de fora. E quem governa o sistema? Os que incluem, que são as pessoas capacitadas, brancas, heterossexuais, de classe alta e ocidentais. São eles que incluem os negros, homossexuais, travestis, pobres e deficientes.
Então, quem decide quem incluir? Os que estão sempre dentro e são sempre os mesmos.
E não se discute a normalidade, o fato de que existe um padrão e que tudo o mais está de fora. Eu já estou aqui, não quero que me incluam em lugar nenhum.
Eu quero que tudo mude.
BBC News Mundo - O que você quer que mude?
Risso - As classificações, a hierarquização das pessoas, o que as pessoas valem pelo que podem fazer, em todos os sentidos.
O mundo atual coloca a nós todos em algum lugar.
Os deficientes são colocados como mão de obra barata, como assistência, como um corpo medicalizado e como um corpo público, porque todos opinam sobre ele, o que pode fazer bem ou mal.
Há pouco tempo, alguém me escreveu pelo Tinder e perguntou: "Você é uma pessoa baixinha?" Aquilo me deu ternura. E respondi: "Sim, baixinha para a mesa de cabeceira".
Eu caminho pela rua e me abençoam pela minha deficiência. E sempre faço a mesma brincadeira: com tantas bênçãos, já ganhei o céu, vou direto e sem escalas.
BBC News Mundo - Você acredita que existem mudanças?
Risso - Sim. Existem muito mais grupos onde somos compreendidos. Fala-se mais sobre capacitismo, que é a hierarquização de corpos e mentes sobre o que eles podem fazer, produzir, sentir ou controlar.
É preciso tomar medidas anticapacitistas, porque estamos submetidos a um sistema arraigado com base na divisão entre os que podem e os que não podem, os que têm e os que não têm.
Continuará havendo mudanças enquanto nós formos os protagonistas e não houver pessoas que queiram ser protagonistas ao nosso redor. Não é preciso tomar o lugar dos outros, como alguns fazem com a palavra "inclusão".
E também acredito que é preciso repensar os nossos privilégios. Eu também preciso repensá-los, porque tenho uma deficiência motora e posso tranquilamente oprimir uma pessoa cega, surda ou neurodivergente.
Mas os privilégios não são abandonados nem renegados, são compartilhados.
Se uma pessoa que não tem deficiência se aproxima de um grupo de pessoas com deficiência e oferece: "Em que posso servir de apoio? Posso fazer isto ou aquilo." Isto é socializar.
Socializar. Desta palavra, sim, eu gosto.