“Quando eu me assumi para a minha família, tive muito medo. Medo de ser gay, medo de ir para o inferno, medo de ser alvo de agressões”, conta o sargento da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) Demer Gabriel, de 48 anos. Natural de Itaquera, Zona Leste de São Paulo (SP), mudou-se com a família ainda criança para a capital mineira, onde cresceu e foi se descobrindo ao longo da vida. Hoje, é exemplo e inspiração para jovens que, assim como ele, são LGBTQIAP+ e ocupam ambientes considerados hostis para a comunidade.
O garoto preto, gay e de família pobre conta ter passado por muitas dificuldades para chegar onde está. Passou fome na infância e na adolescência; catou e vendeu fezes de equinos como adubo na horta comunitária do bairro onde morava; vendeu doces na porta de escolas; foi ajudante em um sacolão onde recebia alimentos como pagamento; trabalhou como office boy e ajudante em uma empresa de limpeza; foi vendedor de quadros de paredes; e antes de entrar para a PMMG, ajudava sua tia a fazer salgados e a vendê-los em comércios na região da Pampulha.
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O sargento, que também é psicólogo de formação, explica que tem uma relação boa com a sua família, apesar da resistência inicial logo após ter se assumido – e que entende os possíveis motivos para tal, já que também sofreu sozinho até entender o que realmente sentia.
“A briga religiosa interna foi muito grande. Várias vezes eu chegava a orar, jejuava, repetia para mim mesmo que eu não sabia o que queria”, conta ele. “Quando me assumi, eu não era apenas o ‘Demer gay’, mas o ‘Demer que cantava na igreja’; o ‘Demer família’. Então, para eles foi um choque, por mais que eu ache que alguns já até soubessem ou desconfiassem ”, conta ele.
Ele também comenta que a religião chegou a falar um pouco mais alto que o afeto em alguns momentos, como quando uma tia lamentou o fato de ele ser gay: “O que Deus te fez para você fazer isso com Ele?”, teria perguntado em uma ocasião.
As dinâmicas e nuances de sua sexualidade também incomodaram e intrigaram familiares: a mãe já dizia que “tudo bem ser gay”, mas que não era para ser afeminado; enquanto o avô chegou a perguntar se o namorado de Demer usava calcinha ou se ele era mulher.
“Minha família não tinha raiva de mim, não era contra a minha pessoa. Eles só não queriam que eu fosse gay, e talvez não queriam que eu sofresse. Eu entendo e respeito eles. Hoje, minha família aceita melhor , mas alguns ainda acreditam que eu vou para o inferno por isso”, conta ele. “Mas enquanto eu estiver na Terra, prefiro viver feliz e depois eu que me vire com a minha alma”, brinca.
O sargento também reforça que sua sexualidade não deve ser encarada como algo exótico ou monstruoso, já que sua rotina não se difere tanto das de outras pessoas.
“Minha vida, minha casa, são como quaisquer outras. No casamento gay, as pessoas acham que a vida é fora do comum; tem gente que acha que nossa casa deve ser uma boate ou coisa do tipo. Mas tem sala, cozinha, quarto, cama de casal, sofá, fogão, geladeira, como qualquer outra casa”, explica.
Descoberta da homossexualidade
Quando Demer se assumiu gay para a família, ele tinha 25 anos e sentia medo. Foi pouco depois de ter entrado para a Polícia Militar de Minas Gerais – aos 18. “Foi difícil, eu era jovem, e por mais que já tivesse muita gente na época, não tinha lei que protegesse essas pessoas”, relata.
O sargento diz nunca ter sido alvo de um ataque homofóbico agressivo, mas que ser foco de piadas foi, e continua sendo, uma constante em sua vida – o que não deixa de ser violento. “Não foi difícil como é para as pessoas que apanham ou coisa do tipo, mas sempre tiveram piadinhas e as pessoas falaram na minha cabeça sobre religião por algum tempo”, conta ele.
Na PMMG, Demer nem chegou a se assumir. Seus colegas de trabalho ficaram sabendo sobre sua orientação sexual por um acaso, que o sargento ainda não sabe definir se foi azar ou sorte: em um dia das suas férias, enquanto discutia com seu namorado da época, uma viatura passava por perto e resolveu interferir, mas quem recebeu a ocorrência no COPOM (Central de Operações da PM) foi sua própria equipe. Quando voltou das férias, percebeu um burburinho e algumas piadas.
“Pouquíssimas pessoas sabiam, algumas desconfiavam, mas quase ninguém tinha certeza. Então, chegou um momento em que todo mundo já sabia e a minha equipe chegou a conhecer alguns dos meus companheiros. Apesar de algumas piadas, ainda tinha gente que me defendia, porque já duvidaram da minha capacidade como oficial por ser gay, e isso não tem nada a ver com meu profissionalismo”, afirma ele, lembrando que nem sempre foi assim.
“Acho que sou um caso à parte na Polícia, talvez pelo meu processo ou pelo meu histórico na instituição, e sei que as coisas não são tão fáceis assim, mas para mim, ter me assumido um homem gay foi até que tranquilo, apesar de, na época, eu não ter achado que foi”, diz.
Antes de poder falar abertamente sobre sua sexualidade, Demer já chegou a apresentar um namorado como cunhado e a cunhada como namorada, além de ter passado por um relacionamento abusivo em que o ex-namorado ameaçava pegar fotos íntimas do casal e levá-las até o comando da PMMG. “Eu tinha muito medo, porque a Polícia era outra, então eu cedia”, explica.
Aceitação na comunidade militar
Com o tempo, as coisas foram melhorando e os direitos da comunidade LGBTQIAP+ também foram se ampliando. Demer conta que um dos eventos de sua vida que mais tiveram repercussão foi seu casamento com o empresário cabeleireiro Maurício Morais Teixeira. Com mais de 350 convidados, a cerimônia religiosa e a festa aconteceram ainda em 2018.
“Muita gente pediu para ir ao nosso casamento, porque nunca tinham ido a um casamento gay, e até hoje é difícil de ter um casamento gay com festa e tudo mais. Mas muitos convidados eram policiais, héteros; tive, inclusive, padrinhos militares. Na festa, teve até show de drag . Foi tudo muito divertido e muitos policiais me falam até hoje que adoraram aquele momento de quebra de preconceito”, conta ele.
Ainda sobre casamentos, o sargento relembra sobre como já foi acolhido por pessoas que achou que, a princípio, não o aceitariam. “Uma amiga da sala de imprensa da PMMG, evangélica, nos chamou para sermos padrinhos do seu casamento na igreja. O pastor não achou ruim e ela gostava dos dois, apesar de todas as implicações da igreja evangélica. Nós fomos e entramos juntos no casamento dela”, conta.
Na própria família, teve dois parentes que casaram e chamaram Demer e seu marido para serem padrinhos, apesar de pedirem que eles não entrassem juntos e já tivessem organizado a entrada deles com outras mulheres. Ele aceitou por não querer brigar. “Eles quiseram que a gente fosse padrinho, mas talvez não estivessem preparados para ver dois homens de mãos dadas entrando numa igreja evangélica”, comenta ele.
Hoje, o sargento continua servindo de inspiração e é procurado por jovens que o veem em suas redes. “Só neste mês, dois seguidores me procuraram para pedir conselhos: um jovem soldado do exército brasileiro que passa pelo dilema de se assumir, e um homem trans que revelou ter me de exemplo para tentar ajudar um amigo PM que, infelizmente, acabou se suicidando”, afirma.
Ativismo e reconhecimento
O sargento já foi premiado por seu ativismo pela comunidade LGBTQIAP+. Em 2022, foi convidado para ajudar na organização da primeira edição do Queer Festival, que teve duração de uma semana e contou com várias ações voltadas para a difusão das causas da comunidade.
No encerramento do Queer Festival, Demer foi premiado por ser uma personalidade que luta pela igualdade e pelo respeito pelas pessoas LGBTQIAP+. O sargento continua no projeto e já está no processo de planejamento da segunda edição, prevista para acontecer em outubro deste ano.
Há pouco tempo, Demer também é membro voluntário do CELLOS-MG (Centro de Luta pela Livre Expressão Sexual de Minas Gerais) por uma vontade antiga.
“Sempre quis ir à Parada LGBT+ de BH, mas nunca tive a oportunidade de acompanhar de perto. No ano passado, me cadastrei como voluntário para trabalhar na assessoria de comunicação deles e, desde então, tenho ajudado a produzir tudo isso”, explica.
Em 2023, também passou a ajudar com o credenciamento da imprensa e de artistas para o evento, além de ter participado do cortejo pela avenida Amazonas, no centro de BH, nos trios elétricos da Apple Party.
Além de sargento e psicólogo, Demer é escritor e roteirista teatral. Em suas obras, busca seguir um movimento inclusivo de pessoas que, normalmente, têm menos oportunidades. “Óbvio que não vou colocar pessoas que não são capacitadas, mas sempre vou puxar pessoas da comunidade LGBTQIAP+ e negras. Sempre bato o pé com isso: a gente existe, e a gente precisa ocupar espaços”, explica.
Com quase 30 anos de serviços prestados à PMMG, o sargento já está com sua aposentadoria prevista para o final deste ano, mas adianta que não vai ficar parado e que pretende continuar firme com seus projetos, além de desenvolver outros que ainda estão em fase de estudos ou de negociação.
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