Emocionante, potente e corajoso, o filme “Para Onde Voam as Feiticeiras” estreia em circuito nacional nesta quinta-feira (31/8). O documentário híbrido, que mescla realidade e performance artística, é centrado em sete personagens LGBTQIAPN+ – as artistas-ativistas autodenominadas “manas” – e tem temática interseccional, passeando entre movimentos sociais sem teto e sem terra, indígenas, negros e feministas.
Trechos de arquivos históricos e jornalísticos trazem impacto à obra, que tenta amplificar vozes frequentemente silenciadas e mostrar como preconceitos de gênero, de raça e de classe impactam no dia a dia de grupos minorizados.
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Arte e alianças cotidianas
Através de interações com transeuntes – que são convidados a incorporar um personagem (com direito a figurinos criativos) e incentivados a dar uma palavra de protesto, denúncia ou desabafo –, improvisos cênicos e rodas de conversa, a obra faz da arte uma aliada ao entrelaçar realidade e ficção para discutir a marginalização de diferentes grupos na sociedade e mostrar a potência das alianças entre movimentos apesar de suas diferenças.
“A grande questão do filme, para mim, é: como é possível criar alianças? Qual o mecanismo para isso? As alianças são apenas um elemento discursivo nas nossas vidas? A gente vai para casa e elas vão junto, ou não?”, pondera Beto Amaral em entrevista ao EM. De acordo com ele – e com outros membros do elenco –, o processo de firmamento de uma aliança é doloroso, mas necessário.
“A nossa aliança foi para nos unirmos e entendermos o nosso lugar social. É dolorido fazer alianças, mas a dor maior é o nosso inimigo que nos oprime e que nos mata todos os dias. Fazer essas alianças é importante para que a gente também possa mostrar o poder transformador da aliança. Afinal, a gente transformou o Brasil ao nos unirmos para tirar o Bolsonaro do poder”, acrescenta Preta Ferreira.
“Percebo que quando a gente lida com minorias e com movimentos , o nosso estágio normal é o de conflito. A gente está sempre em conflito. E fazer alianças é um esforço diário de entender o outro, de entender a dor do outro, de entender quais pautas são importantes de se discutir e quais você pode deixar de lado por um tempo; é estar sempre pensando e repensando o seu lugar em relação ao outro, senão o conflito vem, e ele é muito violento”, complementa Beto Amaral.
Conflitos são necessários
A obra desmistifica a visão de “esquerda unida e conciliatória” que foi muito promovida nas últimas eleições de 2022. Embates emocionados e bastante argumentativos, gravados e repassados em tela, mostram que mesmo com as muitas questões que permeiam os mais diversos grupos minorizados, os conflitos ainda podem tomar conta das discussões. Ainda assim, com tanto potencial para enfraquecer os movimentos, o filme mostra que as diferenças os fortalecem.
“O conflito foi muito importante e um aliado para a gente, porque foi através dele que houve a transformação. Já imaginou se a gente tivesse ideias iguais? A gente não reconheceria a subjetividade do outro e da outra; não conheceria outros problemas; não saberia como lidar, como conviver com a nova sociedade plural”, explica Preta Ferreira.
“Eu sinto que a maior política desse filme é ser um ato poético contra o cinismo, porque tudo aquilo que tem de tensão e de contradição não fica escondido e vem à tona com a estrutura toda do cinema. A gente decidiu se levantar contra isso, encarando todas essas questões de frente e viver esses conflitos entre nós de uma forma construtiva, efetiva e produtiva de forma intensa e profunda. Assim, a gente se fortalece para criar, causar e encarar esses conflitos que uma vez nos oprimiram”, acrescenta Ave Terrena Alves.
Para as artistas-ativistas, para além dos conflitos e das diferenças, é necessário olhar para o que une os movimentos sociais. Apesar de todos quererem – e precisarem – de toda a atenção e ajuda possíveis, a conciliação ainda faz parte da caminhada conjunta.
“É importante a gente trabalhar com a diversidade, porque a nossa aliança se deu devido à necessidade; à ausência de políticas públicas que garantem os nossos direitos. É movimento social de moradia, mas também é de vários outros movimentos sociais, então é conflitante, sim. É conflitante quando se tem ausência desses direitos e a gente se entende como grupos diferentes num movimento só”, conta Preta.
Rodas de conversa
Os debates entre os membros da produção do longa estão entre os momentos de maior destaque da obra. Responsáveis pela transição das temáticas abordadas também mostram como as narrativas foram construídas em um movimento metalinguístico.
“Tem a gente pensando o processo de criar as cenas, e depois vendo a cena; as contradições que a gente tem internamente; as nossas inseguranças; os nossos medos; e os nossos desentendimentos, que nos levaram a um novo estágio de escuta. Isso tudo é muito necessário no momento em que a hipocrisia ainda governa o nosso mundo”, afirma Ave.
Para enriquecer o debate sobre a interseccionalidade dos movimentos e a formação de alianças políticas, o filme também conta com a participação especial de personalidades de destaque em suas respectivas áreas, como Judith Butler, filósofa conhecida internacionalmente por obras que revolucionaram os estudos de gênero; Carmen Silva, líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC); Helena Vieira, pesquisadora e professora de gênero e sexualidade; Sônia Barbosa (em guarani: Ara Mirim), ativista indígena da terra do Jaraguá; e os deputados federais eleitos pelo PSOL Erika Hilton e Pastor Henrique Vieira.
“A gente entendia que era muito importante ter o que a gente chama de ‘encruzilhada’: costurar assuntos que se inter-relacionam. E descobrimos que a nossa ‘encruzilhada’ podia ser a formação do povo brasileiro. Com a Helena Vieira, uma filósofa, conseguimos dar uma ampliada no conceito da ‘encruzilhada’ e começamos a falar nas alianças entre os politicamente não representados, como os indígenas, a negritude, os sem teto, os sem terra, os LGBTQIAP . Passamos a querer entender como é fazer alianças, e também sobre o protagonismo dos movimentos sociais e a necessidade de quebrar bolhas”, conta Carla Caffé.
Sobre a obra
A ideia do filme partiu da execução de um outro filme de Eliane Caffé, “Era o Hotel Cambridge” (2016), que narra a trajetória de refugiados recém-chegados ao Brasil que, juntos com trabalhadores sem-teto, ocupam um velho edifício abandonado no centro de São Paulo.
“O filme nasceu de uma experiência da ‘Lili’ ao ocupar a 9 de Julho, uma ocupação aqui na cidade de São Paulo que nasceu no seio da Ocupação Cambridge do Movimento Sem Teto do Centro (MTSC). Assim que abriram as portas para a vizinhança e para os artistas, ela se aproximou de um grupo LGBT e, querendo conhecer melhor a temática, que é muito complexa, resolveu fazer o ‘Para Onde Voam as Feiticeiras’”, explica Carla Caffé.
De referências, as irmãs listam uma série de obras audiovisuais e literárias, como “Dom Quixote de La Mancha” (1605), “The Act of Killing” (2012), videoclipes da banda Não Recomendados e obras de Carlos Vergara.
Apesar da estreia nacional ocorrer nesta semana, a sua primeira exibição aconteceu ainda em 2020, na 9ª edição do Festival Olhar de Cinema de Curitiba. Com produção da Aurora Filmes, coprodução da Cisma Produções e distribuição da Descoloniza Filmes, já passou por diversos festivais e mostras competitivas, nos quais venceu:
- Melhor Filme no Festival Queer Porto;
- Melhor Filme (voto popular) e Melhor Direção no Rio Festival LGBTQIA ;
- Melhor Direção e Melhor Filme (júri técnico) no Festival de Vitória;
- Melhor Direção Longa Nacional no Santos Film Fest.
Também esteve nas seleções oficiais do 23º Festival de Documentários de Montreal, 42º Festival de Havana, Chicago Change Fest 2021 e La Fête du Slip (Lausanne, Suíça).
Serviço
Sessão de estreia em Belo Horizonte
Local: Una Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias, 1581 - Lourdes)
Data e horário: 31/08 às 17h