MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - Relatórios e imagens compartilhados com o escritório da ONU para prevenção de genocídio apontam uma realidade de desnutrição infantil, insegurança alimentar, abandono, estupro, suicídio e mortes violentas de indígenas madihas kulinas, no sudoeste da Amazônia.
A sistemática violação aos direitos desses indígenas, descrita em documentos e fotos, inclui retenção de cartões de benefícios sociais e uma rede de dívidas contraídas por quem vai às cidades mais próximas dos territórios tradicionais para acessar o Bolsa Família.
Descrições em texto e registros do armazenamento de parte das fotos, obtidas pela Folha, apontam datas de 2023, o primeiro ano do atual mandato de Lula (PT). Para outra parte das imagens não há precisão sobre datas. Os documentos, também obtidos pela reportagem, foram enviado à ONU em 11 de maio de 2023.
A iniciativa de denunciar a realidade dos madihas kulinas à ONU foi do MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas, diante da gravidade do problema, da escalada dessa gravidade a partir de 2010 e da ausência de solução por parte do poder público.
Também subscrevem o documento integrantes da Escola de Direito da UEA (Universidade do Estado do Amazonas), Cimi (Conselho Indigenista Missionário), Opan (Operação Amazônia Nativa), organizações de povos indígenas e tradutores da língua madiha kulina.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) não respondeu aos questionamentos da reportagem.
O procurador da República Fernando Merloto Soave enviou um relatório antropológico concluído em abril de 2022, a cargo do MPF, e um conjunto de fotos, validadas por lideranças indígenas da região, à subsecretária-geral da ONU Alice Wairimu Nderitu, assessora especial para prevenção de genocídio.
Merloto apontou um "quadro de desumanização" dos indígenas, diretamente associado à "absoluta omissão de autoridades públicas". Assim, nada é feito para a prevenção de um genocídio, conforme o procurador.
O material foi enviado na véspera do encerramento da visita de Nderitu ao Brasil. A subsecretária esteve em Roraima para constatar "abusos e violações" cometidos contra o povo yanomami.
O governo federal declarou emergência em saúde pública no território, que fica em Roraima e no norte do Amazonas, e tenta retirar garimpeiros invasores da área. A PF (Polícia Federal) investiga a suspeita de crime de genocídio durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
A constatação de desnutrição grave entre os yanomamis, além de outras doenças associadas à fome, como diarreia e pneumonia, levou à declaração de emergência. Imagens de crianças desnutridas não se limitam aos yanomamis, como mostra pelo menos uma foto inserida na denúncia sobre a realidade dos madihas kulinas.
Além da criança desnutrida, há imagens de abandono dos indígenas em cidades no sudoeste do Amazonas, como Ipixuna, Eirunepé e Envira; corpos de indígenas com sinais de agressão e violência; e espera por atendimento em saúde.
Cerca de 1.000 km separam o território yanomami da região onde vivem os madihas kulinas, que estão divididos em dez terras indígenas, especialmente no médio rio Juruá (AM), e no alto rio Purus (AC). Eles também estão no Peru. As informações são do banco de dados elaborado pelo ISA (Instituto Socioambiental), que aponta a presença de 7.200 mil indígenas nesses territórios no Brasil.
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A realidade é a mesma para madihas kulinas, pirahãs, hupdahs, yuhupdehs e yanomamis em cidades do Amazonas.
Em petição à Justiça Federal em junho deste ano, a Procuradoria apontou insegurança alimentar e risco de morte de indígenas yanomamis que ficam no lado do Amazonas, em razão de deslocamentos forçados para cadastros e saques de benefícios em cidades como Barcelos, no médio rio Negro. A Justiça determinou que o governo providenciasse envio de servidores à região.
O relatório antropológico sobre os madihas kulinas, feito pelo MPF, aponta abuso de álcool entre os indígenas, mortes por afogamento, suicídios e homicídios. São comuns agressões por parte de não indígenas, num ambiente de discriminação e preconceito nos núcleos urbanos. Mas também são frequentes agressões entre indígenas e familiares, associadas ao abuso de álcool.
Entre 2011 e 2016, houve registro de 34 casos de suicídio entre madihas, conforme dados de saúde indígena referentes à área de abrangência de três cidades.
Os indígenas tiveram uma "drástica redução demográfica", em razão da exploração em condições de escravidão em ciclos pretéritos da borracha, e houve uma grande dispersão de grupos familiares em processos de fuga dessa exploração, conforme o relatório enviado à ONU.
"Mesmo com a demarcação de suas terras entre as décadas de 1990 e 2000, os madihas estão em uma grave situação de vulnerabilidade social desde o começo da década de 2010, com o incremento de situações de violência e privação de direitos, especialmente em áreas urbanas", cita o relatório de Pedro Moutinho, perito em antropologia do MPF.
Em agosto, após diligências na calha do rio Juruá, a Procuradoria no Amazonas assinou termos de compromisso com os municípios de Eirunepé e Ipixuna para apoio a uma rede de atenção aos madihas kulinas e a outros povos indígenas da região. Também assinaram os termos representantes da Funai, do Ministério dos Povos Indígenas e da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena).