A possibilidade de indenização pela terra nua como fator condicionante para demarcar territórios tradicionais tornaria o processo demarcatório inviável, por falta de condições orçamentárias do Estado. Segundo levantamento da Agência Pública , seria necessário um montante superior a R$ 1 bilhão para indenizar os proprietários rurais — valor 46% maior do que todo o orçamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ao Correio, o advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto, explica que essa condição também aumentaria a judicialização e violência contra os povos originários, já que as terras entrariam em disputa.
Entidades questionam a necessidade das indenizações. "A Apib se opõe a qualquer tipo de indenização, partindo do entendimento de que a própria constituição aponta o direito originário à terra e prevê no processo demarcatório as devidas garantias de direitos aos pequenos agricultores e aos investidores, que possam ter manejado benfeitorias dentro dos territórios, não demarcados pela morosidade do próprio Estado. Já os grandes proprietários do agronegócio têm atuado sistematicamente com suas frentes, confederações e articulações, para manipular leis, a economia e a política, além do uso da violência e do extermínio, para impedir as demarcações e se locupletar com as invasões", afirmou a Articulação dos povos indígenas do Brasil, em nota.
Após o voto de Alexandre de Moraes, a Apib começou a dialogar com o STF, na tentativa de desidratar a proposta do ministro. "É como se declarasse inconstitucional o marco temporal, mas inviabilizasse a demarcação", pontua Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib. Segundo o especialista, a estratégia de apresentar as contradições do voto do magistrado deu certo, pois os ministros Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso apresentaram posicionamentos com aspectos considerados menos prejudiciais aos direitos dos povos indígenas. Na perspectiva de ambos, a indenização não deve ser pelas terras em si, mas sim pelo "ato danoso praticado pelo Estado". Nesse caso, a demarcação não estaria atrelada às indenizações.
"A única forma que você teria de indenizar um agricultor que perderia a propriedade porque comprou de quem não era dono é dizer que foi um ato ilícito da União, porque pela demarcação de terra indígena não cabe indenização”, defendeu o ministro Barroso. Rafael Modesto, do Cimi, avalia que a natureza da indenização proposta por Zanin e Barroso é "constitucionalmente adequada". "Poderia resolver a situação, porque extrai ou joga a discussão das indenizações para procedimento próprio, retira da demarcação. Essa discussão pode acontecer depois ou a margem do processo demarcatório. Não é a demarcação que cria o direito indenizatório, mas o contrário, é a titulação de terras sabidamente indígenas a terceiros pelo estado federado ou pela União que cria expectativa do direito de alguém", pontua o advogado.
Brecha para exploração econômica em territórios indígenas
Advogados ouvidos pelo Correio criticam o prazo estabelecido por Toffoli para que o Congresso legisle sobre exploração econômica em territórios indígenas, pois o tema não estava em discussão no julgamento do marco temporal e essas atividades representam riscos aos povos originários. "As motivações expostas pelo ministro não se resolvem com uma lei. Se hoje há um avanço na exploração das terras indígenas por não-índios, ela ocorre justamente pela falta das demarcações e pela falta de ação do Estado em protegê-las. Jogar um tema tão sensível no final do debate, ao invés de zelar pelos direitos indígenas, estimula ainda mais o avanço sobre essas terras, que ressalte-se, devem ser as últimas a serem exploradas no país, conforme a vontade do constituinte", avalia a advogada Paloma Gomes, do Cimi.
A Apib refuta o argumento de "omissão" apresentado por Toffoli ao cobrar a regulamentação de exploração econômica, citando o fato de que em 2022, o PL 191/2020 , que versa sobre a mineração em terras indígenas, tramitou em regime de urgência. "Os últimos anos foram marcados por uma política anti-indígena que desmontou e desfinanciou os órgãos responsáveis pela implementação da Política Indigenista Nacional e pelo controle ambiental. Um dos eixos desta política se estruturou justamente sobre facilitação da abertura de terras indígena à exploração econômica, combinando o estrangulamento de instituições de proteção socioambiental com discursos e sinalizações públicas em favor de agentes econômicos interessados nesta exploração ilegal, que se viram incentivados a cometerem ilícitos ambientais com a garantira de que não seriam punidos", ressalta a associação.
Entidades indígenas também lembram que essas atividades ameaçam a sobrevivência física e cultural dos povos. "A história recente nos mostra que a existência de empreendimentos para extração de recursos hídricos, orgânicos (hidrocarbonetos) e minerais, na prática, gera a destruição de territórios indígenas, a contaminação das populações por agentes biológicos e químicos, como o mercúrio, e o esgarçamento do tecido social destas comunidades, além de enfraquecer ou inviabilizar sua soberania alimentar e submeter mulheres e crianças à violência física e sexual", pontua a Apib.
No Congresso
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado também está analisando um projeto de lei sobre o marco temporal, sob relatoria do senador Marcos Rogério (PL-RO), que fez a leitura do parecer favorável à tese. "Com sua aprovação, finalmente o Congresso Nacional trará segurança e paz às populações indígenas e não indígenas, especialmente do campo. Não se pode aceitar que, 35 anos após a entrada em vigor da Constituição, ainda haja celeuma sobre a qualificação de determinada terra como indígena, gerando riscos à subsistência e à incolumidade física de famílias inteiras", disse.
Entretanto, após o STF declarar a tese do marco temporal como inconstitucional, a bancada ruralista ameaçou obstruir votações no Congresso Nacional e tem se articulado para apresentar Propostas de Emenda à Constituição (PECs) sobre demarcação de terras. Esses movimentos têm sido acompanhados com atenção por indígenas e defensores dos direitos originários. "Não adianta o Congresso criar uma lei se ela não for reconhecida pelo Supremo. Os congressistas têm pensado agora em mudar o próprio artigo 231 da Constituição, para que aí sim, na nova redação, caiba um marco temporal. Essa é a bravata que eles têm dito", ressaltou a advogada Lethicia Reis, do Cimi.
Defensores do marco alegam que a tese garantiria segurança jurídica e mais espaço para atividades econômicas do agronegócio. No Suprema Corte, a análise sobre a demarcação de terras indígenas começou em 2019, com o reconhecimento da existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina.