Mesmo antes da aposentadoria da ministra Rosa Weber, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro já estava na lanterna do ranking de participação de mulheres em Supremas Cortes da América Latina e Caribe.
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Apenas Argentina, Paraguai e Bolívia ficam atrás, com menos de 12% de mulheres.
Mas com a saída de Weber, o STF pode passar a ser composto por dez homens e apenas uma mulher, caindo ainda mais no ranking.
A nomeação de um novo ministro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda é esperada, mas a disputa tem se afunilado em torno de homens, segundo diversas fontes da imprensa brasileira.
Apesar da intensa campanha para que indique uma mulher negra, Lula afirmou que não levará em conta a cor da pele ou o gênero para escolher seu indicado.
Perguntado, o presidente disse que escolherá alguém em quem ele confie e que atenderá aos "interesses" do país.
Se a preferência por um ministro homem for confirmada, a única mulher integrante na Corte será a ministra Cármen Lúcia, nomeada por Lula em seu primeiro mandato.
Nesse caso, o Brasil cairá três posições no ranking de participação feminina em Supremos da América Latina e Caribe.
A lista foi elaborada pela BBC News Brasil, tendo como base informações das Nações Unidas e dos governos locais.
A reportagem procurou a Presidência da República e o Ministério das Mulheres para pedir comentários sobre os dados, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
As Supremas Cortes são compostas de formas distintas em diferentes países, com arranjos e sistemas de nomeação de juízes que variam muito.
Mas, para efeito de comparação, a reportagem considerou o percentual de mulheres em cada um dos tribunais analisados.
Sem uma nova mulher no STF, o país passará a ser o segundo menos igualitário da região, à frente apenas da Argentina, que não tem nenhuma mulher em sua Corte Suprema de Justiça, formada por quatro magistrados.
Em percentual, o Brasil teria apenas 9,1% de representantes femininas no STF, atrás de nações controladas como Venezuela, El Salvador e Nicarágua, apontados por organismos de direitos humanos e analistas internacionais como autoritários ou não democráticos.
Já o país da América Latina e Caribe com melhor representação feminina em seu tribunal máximo é a Jamaica, com 30 mulheres em uma Suprema Corte de 42 magistrados.
A Suprema Corte jamaicana, que tem sua sede em Kingston, é responsável por julgar questões civis e criminais graves e tem jurisdição ilimitada. Seus membros são nomeados pelo Governador-geral, um cargo basicamente cerimonial cujo titular é escolhido pela Coroa britânica.
Um outro tribunal, o Comitê Judicial do Conselho Privado, tem sede em Londres, Reino Unido, e atua como a última corte de apelação para alguns países da Commonwealth em casos em que há possibilidade de recorrer para além da Justiça local.
O Comitê Judicial é composto por 12 juízes - 11 homens e 1 mulher - que também formam a Suprema Corte do Reino Unido (veja abaixo).
Em comparação com os membros do G7, grupo que inclui as sete democracias mais ricas do mundo, o Brasil só perde para a Suprema Corte do Reino Unido.
O melhor colocado do G7 é a França, com uma composição de pouco mais da metade de magistradas do sexo feminino.
No país europeu, os juízes da chamada Corte de Cassação são escolhidos pelo presidente a partir de indicações do Conselho Superior da Magistratura Judicial.
Um Judiciário masculino e branco
A aposentadoria de Rosa Weber foi publicada na última semana no Diário Oficial da União, mas ainda não se sabe quem ocupará a vaga deixada por ela.
A Constituição não impõe um prazo para que o presidente da República indique um novo ministro do STF.
Porém, entre os mais cotados, segundo os principais meios de comunicação brasileiros, estão o ministro da Justiça, Flávio Dino, o presidente do TCU (Tribunal de Contas da União), Bruno Dantas, e o advogado-geral da União, Jorge Messias.
Desde sua instalação em 1891, o STF teve apenas três mulheres entre seus ministros: Rosa Weber, Carmen Lúcia e Ellen Gracie, empossada em 2000 como a primeira magistrada do sexo feminino na Corte e que se aposentou em 2011.
Na semana passada, um grupo de 25 deputadas federais da base do governo enviou uma carta ao presidente Lula pedindo que ele indique uma mulher negra para o STF, mais um capítulo da pressão que tem sofrido de seus próprios correligionários neste sentido.
No documento, as parlamentares argumentam que esse é um passo essencial para a representatividade da população negra nas esferas de poder e também para a modernização do Judiciário.
"A reivindicação por uma ministra negra é essencial para o avanço na necessária transformação do sistema de justiça brasileiro, não só pela importância de ver o povo negro sendo representado, mas por todas as possíveis mudanças estruturais na forma como a lei será interpretada, o direito aplicado e a justiça feita", afirmam as deputadas de partidos como PT, PSOL, PSB e PCdoB.
Em termos de representatividade de raça, o Supremo brasileiro não tem atualmente nenhum magistrado que se identifique como negro, apesar das populações preta e parda representam 9,1% e 47% da população brasileira, respectivamente.
Em sua história, a corte teve apenas três ministros negros, todos homens e já aposentados: Pedro Lessa, nomeado em 1907, Hermenegildo Rodrigues de Barros, nomeado em 1919, e Joaquim Barbosa, indicado em 2003.
A realidade é a mesma quando considerado o contexto geral do Judiciário no Brasil. De acordo com levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as mulheres representam 38% da magistratura, sendo 40% presentes no primeiro grau de jurisdição e apenas 21% no segundo grau.
Outra pesquisa mostrou que 14,5% dos juízes brasileiros se declaram negros, sendo 1,7% pretos(as) e 12,8% pardos(as).
Entre os principais nomes cotados para a vaga do STF, apenas Flávio Dino se identifica como pardo.
Além da vaga no STF, também devem abrir em breve duas posições no Superior Tribunal de Justiça (STJ) – estão previstas para outubro e janeiro as saídas das ministras Laurita Vaz e Assusete Magalhães da corte. Segundo o portal UOL, os mais cotados para substituir as magistradas também são homens.
No final de setembro, o CNJ aprovou a criação de uma política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Judiciário.
A proposta original, que contou com o apoio da ministra Rosa Weber, previa a utilização de uma lista exclusiva para mulheres em alternância com a lista mista tradicional. Isso porque os juízes promovidos são escolhidos a partir de duas listas, uma que classifica os candidatos por tempo de serviço e outra por merecimento (usando critérios objetivos), de forma alternada.
O texto original buscava a utilização das listas femininas tanto quando o critério da vez fosse merecimento quanto antiguidade. Mas apenas a mudança no critério de merecimento foi aprovada.
Dessa forma, cada nova vaga aberta continuará sendo preenchida usando uma alternância entre as listas de antiguidade e merecimento, mas sempre que essa segunda for considerada haverá uma segunda alternância, entre uma lista formada apenas por mulheres e outra mista.
Obstáculos na carreira
Para a juíza de direito Daniela Pereira, que faz parte do Movimento Nacional pela Paridade no Judiciário, impulsionador da proposta aprovada no CNJ, a desigualdade de gênero na área judicial no Brasil tem origem nos obstáculos enfrentados pelas mulheres na ocupação.
A magistrada cita, por exemplo, a dificuldade de muitas em se mudar de cidade com frequência, algo que é quase inevitável para juízes que buscam a progressão de carreira.
"As mulheres enfrentam uma série de empecilhos porque acumulam mais funções de cuidado, seja dos filhos, dos maridos ou do ambiente doméstico", diz.
"Os homens também costumam integrar mais grupos, como por exemplo o grupo do futebol, do tênis ou o clube do charuto. Por meio disso, fazem mais conexões e têm seus nomes mais lembrados para indicações. Enquanto isso as mulheres se sujeitam a duplas jornadas e têm menos tempo."
Segundo a magistrada, as obrigações com a casa e a família, que costumam recair desproporcionalmente sobre as mulheres, também impedem que muitas busquem especializações ou se prepararem de forma suficiente para os concursos para juiz.
Essa realidade, segundo especialistas, reflete diretamente na composição do STF, cujos integrantes são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado.
Quanto menos mulheres conseguem progredir na carreira como juízas, menos nomes femininos são considerados no momento da indicação.
Além disso, segundo Luiza Ferraro, pesquisadora do Supremo em Pauta da FGV Direito SP, há menos mulheres em outras posições de influência que costumam render nomeações para o STF, como, por exemplo, o Ministério da Justiça ou a Advocacia-Geral da União (AGU), o que também dificulta que seus nomes sejam cogitados.
"Tivemos uma mulher Advogada-Geral da União nos últimos 30 anos e nenhuma mulher ministra da Justiça na história do Brasil", diz Ferraro.
"As barreiras que impedem muitas mulheres de progredir são como um teto de vidro: aparentemente invisíveis para muitos, mas na verdade presentes."
Os argumentos pró-representatividade
Para Daniela Pereira, um Supremo igualitário é um preceito constitucional.
"Nossa Constituição estabelece de forma clara que um dos objetivos da nossa República é a construção de uma sociedade livre, justa e fraterna e que também consagre o princípio da igualdade", diz.
"Será que um Supremo formado majoritariamente por homens brancos está cumprindo os preceitos constitucionais?"
Segundo a juíza, uma mudança no cenário atual é "um imperativo".
"Mesmo alguém que não tenha argumentos técnicos ou nunca tenha lido a nossa Constituição consegue a olhos vistos perceber que a igualdade não está sendo efetivado quando ignoramos essa dissidência."
Para além da manutenção da igualdade, as especialistas consultadas pela BBC News Brasil argumentam que um Judiciário e um Supremo mais plurais produzem decisões mais legítimas e de maior qualidade.
"O grande papel do STF é de intérprete e garantidor da Constituição - e mulheres, assim como negros e mulheres negras, trazem uma diversidade de olhar para a Constituição e suas interpretações", diz Luiza Ferraro, da FGV.
Para a pesquisadora, essas visões diversas são especialmente importantes para garantir a manutenção e o cumprimento dos direitos individuais de minorias.
Ferraro cita como exemplo o voto de Rosa Weber para que o aborto realizado até 12 semanas de gestação não seja mais crime no país.
Pouco antes de sua aposentadoria, a magistrada pautou o julgamento no plenário virtual, em que os ministros depositam seu voto eletronicamente por escrito, para que tivesse tempo de se manifestar.
A ministra argumentou que a criminalização fere direitos fundamentais das mulheres, como os direitos à autodeterminação pessoal, à liberdade e à intimidade.
Por outro lado, Weber considerou que a proibição não é eficiente para evitar abortos, sendo mais adequado políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada, como educação sexual.
"Nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas!", sustentou Weber em seu voto.
As manifestações da ministra Carmen Lúcia contra as constantes interrupções feitas pelos magistrados do sexo masculino durante suas falas também mostram como é importante ter mais mulheres na Corte, diz a pesquisadora da FGV.
"Nós ficamos silenciadas pela palavra, pela voz mais alta, mais grave, dos homens. Pelos espaços que eles tiveram para falar.
Muitas vezes há um ambiente tal que eles nem se dão conta que estão interrompendo mais as mulheres do que outros homens", disse a ministra em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em março deste no.
"O ambiente do Judiciário é machista, majoritariamente machista. Basta ver que na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a maioria é de mulheres, mas nós nunca tivemos na história uma mulher presidindo a OAB", acrescentou Carmen Lúcia.
"Não é porque se tratam de ministras mulheres que elas vão votar da mesma maneira - elas são pessoas qualificadas que têm visões distintas", avalia Ferraro.
"Mas a tendência é que essa representatividade garanta os direitos de minorias como as mulheres ou os negros, caso possamos ter mais ministros ou ministras negras no futuro."
O que pesa para Lula, segundo especialistas
Nas recentes disputas por vagas no Supremo, especialistas apontam que as indicações no Brasil têm sido muito mais pautadas por critérios políticos e estratégicos do que por méritos como saber jurídico ou interesses de grupos sociais.
Em artigo para a revista Piauí, o advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei tratou sobre a "escolha de nomes ideologicamente alinhados" nos últimos anos, logo depois que Lula escolheu seu antigo advogado Cristiano Zanin para o STF no início de agosto.
Para Mafei, o presidente Lula privilegiou "lealdade e fidelidade pessoais acima de quaisquer outros critérios". Ainda segundo o especialista, essa tendência deve ser mantida nas próximas indicações como uma reação ao que os políticos veem como abusos de poder de ministros e da influência da política na jurisprudência do tribunal.
"Nesse ambiente, o que tem mais valor, aos olhos de quem indica? A respeitabilidade intelectual, a ética do recatamento judiciário, a deferência à letra da lei e à colegialidade, a conduta proba ou republicana? Ou a confiança de que, quando a coisa apertar, alguma lealdade e fidelidade fraternas no tribunal funcionarão como o melhor porto seguro?", escreveu.
"Quem deseja construir uma candidatura progressista para a sucessão de Rosa Weber precisa enxergar que o jogo da indicação para o Supremo mudou", advertiu o professor, afirmando que, na lógica atual, pouco importa a diversidade que uma nomeação pode agregar ao tribunal quando a segurança do presidente e de outros políticos está em jogo.
Grazielle Albuquerque, jornalista, cientista politica e autora de "Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF" (no prelo, pela editora Amanuense) concorda. "É reconhecido como as outras indicações do PT, em especial dos governos de Lula, passavam por uma conversa mais partidária, por coalizões, tinham uma costura que em boa parte era encabeçada pelo (então ministro da Justica morto em 2014) Márcio Thomaz Bastos", diz.
Depois da Operação Lava Jato e suas consequências, tudo mudou, ela opina. "Essa mediação para a escolha de um nome se enfraqueceu drasticamente. A escolha se tornou mais pessoal e o cálculo político é o principal."