Jornal Estado de Minas

21 DE OUTUBRO

'Não é doença': conheça a luta pela despatologização da transexualidade

Sol Markes, produtora cultural que faz parte da equipe do bar Yana, conhecido por acolher mulheres e LGBTQIAPN+ (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)

“Chega a ser um impedimento que cria traumas e barreiras de não se sentir confortável para ir a um posto de saúde quando você está doente por medo da repressão e de como vai ser recebida naquele lugar”, conta a atriz e produtora cultural Sol Markes, de 25 anos, sobre a patologização da transexualidade.





Ela, assim como muitas outras pessoas trans, enfrenta a luta diária de existir como um corpo que, até hoje, é visto como “incongruente” – principalmente pela área da Saúde –, apesar dos avanços ao longo dos anos.

Em maio de 2019, a militância pela despatologização da transexualidade resultou na sua retirada da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID) como “transtorno mental”, onde esteve por 28 anos – embora continue na lista geral, dessa vez classificada como “incongruência de gênero”, condição de “não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento”, de acordo com o Conselho Federal de Medicina do Brasil.

“A transexualidade saiu do CID entre aspas, porque ela foi deslocada da categoria de ‘transtorno mental’ para as chamadas ‘condições relacionadas à saúde sexual’, então é uma despatologização ainda muito frágil”, explica o psicólogo Gab Lamounier, que integra a coordenação da Akasulo, centro de convivência LGBTQIAPN+ localizado no Barreiro.





Para marcar a luta e a militância constantes do movimento, celebra-se hoje, 21 de outubro, o Dia Mundial de Luta contra a Despatologização da Transexualidade. A data, que marca o mês desde 2009, é sempre cercada de desafios e vitórias a passos lentos no Brasil, país que mais mata travestis e pessoas transgênero pelo 14º ano seguido, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Participação do SUS

A mudança oficializada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) implica que pessoas transgênero podem necessitar de cuidados médicos, especialmente durante um processo transexualizador, como o que é realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – incluindo acolhimento, uso de nome social hormonioterapia e cirurgia de adequação do corpo biológico à identidade de gênero e social –, mas não mais como pessoas que precisam de tratamento psiquiátrico.

“Ao longo da minha trajetória de mais de 40 anos como ativista, muita coisa mudou. A cirurgia de redesignação sexual não era bem compreendida e passava por todo um processo judicial muito constrangedor que a geração atual não passou. Antes, você estava submetida a uma análise do Judiciário, que tinha você como doente, e a cura para essa doença era a cirurgia, e muitas pessoas não tinham acesso a ela, porque era caríssima e ainda não era incorporada pelo SUS”, relata Walkiria La Roche, diretora estadual de Políticas de Diversidade de Minas Gerais.





De acordo com ela, juízes poderiam interferir na decisão sobre a transexualidade de uma pessoa, desconsiderando a autodeclaração, e patologizando a condição delas.

“Meu ativismo era pela desburocratização da retificação do registro, ou seja, mudar a carteira de identidade e a certidão de nascimento de uma forma menos violenta, porque antes você ficava à mercê de outra pessoa para dizer se você era homem ou mulher.  Então a despatologização veio tardia, mas chegou, graças ao nosso ativismo que lutou muito pelo reconhecimento. Ainda assim, há sempre um cidadão entendendo que as pessoas transexuais ou travestis podem ser doentes”, complementa Walkiria.

Ainda assim, para ter acesso ao processo transexualizador incorporado pelo SUS atualmente, é preciso atender a uma série de requisitos que limitam as experiências e vivências transexuais.

“A gente gosta de colocar como crítica construtiva que é um processo cisexualizador. Defendemos, sim, a normativa. Que bom que ela existe e devemos avançar a partir dela, mas a maneira como esse processo está colocado hoje em dia é patologizante, de uma trajetória única para uma pessoa trans. Tem um checklist muito rígido para você acessar certos espaços de cuidado”, diz Lamounier.

Violências cotidianas

Muitas pessoas transgênero têm receio de acessar os serviços de saúde por receio de sofrerem com a invalidação e outros tipos de violência, como é o caso do arte-educador e estudante de Artes Visuais da UFMG Vit Leão e de Sol Markes.





Atualmente bem estabelecidos em suas áreas, ambos vieram para a capital mineira em busca de novos horizontes e passaram por um processo de redescobrimento das próprias identidades por aqui, logo que entraram na faculdade.

“Foi quando eu consegui ser jovem, pude sair, beber com a tranquilidade de estar com meus amigos, que consegui olhar mais para quem eu era, e eu sou trans. Sou um homem, e foi difícil de aceitar com meus 23, 24 anos, porque talvez fosse uma coisa para se viver na adolescência, mas não tive porque minha adolescência foi roubada”, conta Vit, que por muito tempo precisou cuidar de seus pais e não teve tempo e tranquilidade para pensar sobre si mesmo.
 
Vit Leão é arte-educador e estudante de Artes Visuais da UFMG (foto: Túlio Santos/EM/D.A.Press.)
“Foi no teatro universitário que fui apresentada a uma amiga que já se entendia enquanto uma pessoa trans, e foi a partir do contato com outra pessoa que entendi que não tinha nada de errado comigo e que era possível de se existir da forma como se enxerga”, explica Sol, que tem uma irmã mais velha que também é mulher trans.





Também para ambos, a violência é grande, mas sutil. De acordo com eles, a patologização da transgeneridade se evidencia ainda mais nos serviços de Saúde e de Direito.

“Para você conseguir qualquer coisa, seja no plano de saúde ou seja no SUS, você é imediatamente patologizado, porque sua condição tem um CID. Recentemente, eu mesmo fui fazer uma consulta para poder ser mastectomizado, e para conseguir autorização do meu plano, ser trans é considerado uma doença; não pode ser só um desejo de como eu gostaria de me apresentar, com uma fisionomia masculina”, relata Vit.

“Se você parar para pensar, a patologização está muito nesses lugares institucionais: dentro do posto de saúde ou num cartório. No momento de retificar o meu nome, por exemplo, durante todo o processo eu tive que voltar ao cartório da minha cidade diversas vezes e as pessoas que estavam lá não estavam preparadas para lidar com isso. Não sei se eu fui a primeira pessoa ali a retificar, porque eles não sabiam mesmo. Uma moça chegou a me pedir um laudo e usou o termo transexualismo”, detalha Sol.


Patologização

O termo “transexualismo” foi utilizado erroneamente até 1998, quando foi corrigido para “transexualidade” no CID. O sufixo “ismo” vem do grego e atribui à condição um caráter de patologia; já o sufixo “dade” se refere a uma característica. Apenas essa mudança – como também ocorreu com “homossexualismo” e “homossexualidade”, foi um pequeno passo em direção à despatologização da transgeneridade.





De acordo com Gab, a patologização da condição também é uma questão de colonialidade, já que a categorização dos espectros da sociedade começou juntamente com o nascimento das Ciências. “Isso tudo foi num momento da nossa história em que a ciência estava colocada num lugar de muita legitimidade e de muita necessidade de catalogar tudo para organizar a vida; organizar o que é o certo; o que é errado; o que é desvio; o que é normal. Então, os médicos, a partir desse estudo do que seria o anormal – fora da cisnormatividade – foram colocando nesse lugar de desvio”, explica ele.

Segundo o psicólogo, a patologização da transexualidade é a causa e consequência de vários problemas, já que ela molda como os profissionais olham e cuidam de pessoas trans.

“A patologização, transformar em patologia, quer dizer transformar uma experiência humana num discurso médico para controlar, invalidar, deslegitimar certas experiências. Durante muito tempo na história, os médicos, os psicólogos tentaram dizer o que deveria ser o destino para uma experiência trans, mas a gente não quer uma prescrição sobre as nossas experiências. Isso é de uma violência gigantesca”, afirma Gab.

“Pessoas trans não acessam só o endocrinologista, só o psiquiatra, só o cirurgião. Pessoas trans acessam, como qualquer pessoa, outros espaços de saúde. Elas também têm dor de dente, também têm questões na pele, no estômago. Por ainda constar nesses manuais , ainda há um certo reforço de que existe alguma incongruência, como se a condição trans fosse uma condição de incongruência, e como se existisse algo que é congruente”, acrescenta ele.





Contra o sofrimento

A luta coletiva pela despatologização também envolve as experiências individuais. De pessoas que preferem passar pelo processo transexualizador do SUS àquelas que se identificam com um pronome, mas não se importam em aparentar outro, é importante que todos estejam confortáveis com seus próprios corpos.

“Eu tenho lutado para que a gente possa acreditar na despatologização; acreditar que uma experiência trans não tem que ter a ver necessariamente com sofrimento. A gente não pode achar que ser uma pessoa trans tem que dizer que ela tem ódio dela mesma, que ela seja triste com ela mesma, mas sim que ser uma pessoa trans é uma experiência normal”, diz Gab.

Para quem enfrenta a transfobia desde muito nova, os desafios persistem, mas seguem sendo superados. Paloma Nobre, chef de cozinha de 37 anos, conta que começou a transição aos 14 anos de idade e foi uma das primeiras mulheres trans a retificar os documentos em Belo Horizonte.





“Eu sempre me assumi e sempre me aceitei. Nunca pedi para que a sociedade me aceitasse, até mesmo para a minha família, nunca pedi que me aceitassem. Só exigi que me respeitassem, porque a única pessoa que tinha que me aceitar era eu mesma. E eu me aceitei desde muito nova”, conta ela.

Paloma, que faz parte do ativismo pelos direitos das pessoas transgênero, conta que é preciso normalizar, apoiar e acolher essa população.

“A despatologização da transexualidade foi uma conquista muito grande, porque a gente foi taxada de doente durante muitos anos, coisa que nunca fomos e nunca seremos. Nós não escolhemos ser assim; nós nascemos assim e não é doença, não existe cura para tratar os genes. Somos normais como todo mundo”, completa.
 

Qual a definição de transfobia?

A transfobia configura qualquer ação ou comportamento que se baseia no medo, na intolerância, na rejeição, no ódio ou na discriminação contra pessoas trans por conta de sua identidade de gênero. Comportamentos transfóbicos são aqueles que dizem respeito a quaisquer agressões físicas, verbais ou psicológicas manifestadas contra a expressão de gênero de pessoas trans e travestis.





O que é um ato transfóbico?

Atos transfóbicos podem ser cometidos por qualquer pessoa, mas geralmente partem de pessoas cisgênero que não compreendem ou têm aversão à comunidade trans, desencadeando ações como crimes de ódio.

Diferentemente de crimes comuns ou daqueles considerados passionais, a violência letal contra pessoas trans podem ter como fator determinante a identidade de gênero ou a orientação sexual da pessoa agredida.

A transgeneridade

Para entender melhor as relações entre identidade de gênero, é importante saber a diferença entre cisgênero e transgênero:
  • Cisgênero é aquela pessoa que se identifica com seu sexo biológico, seja masculino ou feminino (exemplo: uma pessoa que nasceu com genitália feminina e se identifica com o gênero feminino é uma mulher cis).
  • Transgênero é aquela pessoa que não se identifica com o sexo biológico que nasceu (exemplo: uma pessoa que nasceu com genitália masculina e se identifica com o gênero feminino é uma mulher trans).
  • Existem, também, diferenças entre mulheres transgênero e travestis que se concentram em suas identidades de gênero e maneiras de expressá-las.

O termo transgênero pode ser utilizado para se referir às pessoas que não se identificam com o seu sexo biológico e que podem buscar tratamentos hormonais ou cirúrgicos para se assemelharem ao gênero com o qual se identificam.



Já o termo travesti se refere uma identidade brasileira relativa apenas às pessoas com o sexo biológico masculino que se identificam com o gênero feminino e não necessariamente buscam mudar as suas características originais por meio de tratamentos.

Direitos das pessoas trans no Brasil

A Constituição Federal de 1988 não faz referência explícita à comunidade LGBTQIAP+, mas muitos dos seus princípios fundamentais englobam essa parcela da sociedade. É o caso do princípio da dignidade humana; da igualdade entre todos; e do dever de punir qualquer tipo de discriminação que atente contra os direitos fundamentais de todos.

Com eles, há dispositivos legais estaduais e municipais que tratam especificamente sobre a população LGBTQIAP e transfobia. Um exemplo é o Decreto 41.798 do Estado do Rio de Janeiro, de 2009, que criou o Conselho dos Direitos da População LGBTQIAP , que tem como finalidade e responsabilidade:
  • estimular e propor políticas públicas de promoção da igualdade e de inserção educacional e cultural dessa população;
  • adotar medidalegislativas que visam eliminar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero;
  • receber, examinar e efetuar denúncias que envolvam atos discriminatórios contra membros da comunidade LGBTQIAP .





Outros avanços legislativos envolvem o reconhecimento em 2018, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do direito das pessoas de alterarem seu gênero e nome civil nos cartórios – agora, sem a obrigatoriedade de passar por cirurgia de redesignação.

Há também a decisão do STF de 2019 de enquadrar crimes de LGBTfobia na lei do racismo – com as mesmas penas –, enquanto uma legislação específica não é elaborada.

Dados sobre a transfobia no Brasil

O Brasil ainda não possui dados oficiais sobre LGBTfobia em geral e os dados sobre a transfobia no país são divulgados pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) anualmente com base, principalmente, em notícias publicadas pela mídia.

Como já comentado, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo – o que não configura apenas assassinatos, mas também inclui outras causas de morte, como suicídio e lesões em decorrência de agressões.





Brasil tem Secretaria LGBTQIA

Atualmente, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania conta com a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA , comandada pela travesti paraense Symmy Larrat.

Junto ao Ministério da Justiça, a Secretaria LGBTQIA articula projetos para proteção da população trans, inclusive com participação da Antra e das deputadas Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), as primeiras parlamentares transgênero da história do Congresso Nacional.
 
 

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