Medeiros, São Roque de Minas e Campinas (SP) – Para ser vendido em outros estados, o queijo canastra feito com leite cru, considerado patrimônio cultural e imaterial de Minas Gerais, precisa se submeter a uma complexa rede de contrabando que envolve atravessadores (chamados de queijeiros), desvio das rodovias principais por estradas de terra durante as madrugadas para fugir da fiscalização, falsificação de rótulos e esquemas para “esquentar” o queijo utilizando registros dos poucos produtores autorizados. A reportagem do Estado de Minas acompanhou toda a cadeia do queijo, desde o momento em que a vaca é ordenhada até o trabalho do queijeiro e traça os caminhos obscuros de um dos produtos mais emblemáticos da cultura mineira.
O que se chama de queijeiro é uma empresa, com diversos funcionários, e que há pouco mais de um mês não pode emitir nota fiscal. A pressão maior se deve a uma tentativa do governo estadual em regulamentar a produção de queijo. Em janeiro deste ano foi editada a Lei 19.492, que aguarda regulamentação e pretende minimizar a informalidade na produção de queijo de minas artesanal. Enquanto isso não ocorre, a realidade é outra.
Em um universo de mais de 30 mil produtores de queijo em Minas Gerais, apenas 175 têm cadastro no IMA. A consequência é uma imensa produção que não pode ser comercializada legalmente. Somente em São Roque de Minas são mais de 1,5 mil propriedades, com produção estimada de 40 toneladas por semana. A reportagem acompanhou o trabalho de um queijeiro, que, na semana passada, levou 9,07 toneladas para uma dezena de cidades próximas a Campinas (SP). A principal lei federal que rege a comercialização de queijo é de 1952 e determina que, para um queijo mineiro ser vendido em outro estado, são necessários 60 dias de cura. Ou seja, o queijo deve esperar por dois meses em um entreposto fiscalizado pelo Ministério da Agricultura até o momento da venda, quando recebe o carimbo do Serviço de Inspeção Federal (SIF). Há seis entrepostos em Minas Gerais (Abadia dos Dourados, Cruzeiro da Fortaleza, Coromandel, Araxá e dois em Patos de Minas). Apenas 40 produtores são vinculados a esses entrepostos, o que representa uma comercialização de pouco mais de 40 toneladas por mês.
“O mercado consumidor, principalmente o paulista, quer o queijo fresco. O queijo curado serve apenas para ralar e fazer pão de queijo”, afirma queijeiro de São Roque de Minas, que pediu para não ser identificado. Somente esse queijeiro vende por mês, de maneira ilegal, a mesma quantidade que os seis entrepostos juntos para o mercado paulista. Com nove funcionários e um galpão para armazenar, lavar e preparar o produto, o queijeiro funciona como uma espécie de entreposto, mas não aguarda 60 dias nem tem cadastro no IMA.
Método
A primeira parte do trabalho do queijeiro é buscar os queijos nas fazendas. A reportagem acompanhou um atravessador que tem duas caminhonetes, cada uma com dois funcionários, que recolhem os produtos na segunda, terça e quarta-feira. Eles passam em dezenas de propriedades rurais, a maioria pequenas, que sobrevivem exclusivamente da venda do queijo e da mão de obra familiar. Depois de recolhidos, os queijos são preparados para o transporte e venda em um galpão na área urbana da cidade. Três funcionárias se encarregam de lavar os queijos e separá-los por tamanho e qualidade. Parte da produção é colocada em caixas. Alguns, de tão frescos, precisam ficar envoltos em canos de PVC para que não desmanchem. Os piores queijos são imersos em baldes com sal grosso e depois ralados. O destino são fábricas de pão de queijo, a maior delas localizada em Hortolândia (SP).
São produtos sem nota fiscal e que, além de não cumprir as regras sanitárias, geram um rombo aos cofres públicos, pois não recolhem impostos. O queijeiro explica que algumas cidades do interior de São Paulo, como Bragança Paulista, têm uma fiscalização mais rigorosa. “Supermercados foram multados por vender queijo de minas sem o SIF”, explica. A solução foi falsificar rótulos de dois laticínios, um de Araxá e outro de Poços de Caldas, detentores do SIF, e embalar o queijo artesanal das fazendas de São Roque de Minas. Outra estratégia utilizada – esta pelos queijeiros que vendem no território de Minas Gerais – é “esquentar” o queijo sem registro no IMA em algumas das 175 queijarias com registro.
Depois de carregar o caminhão, a carga deixa o depósito às 19h15 e segue viagem. São dois “obstáculos” principais. O primeiro é uma balança de pesagem obrigatória entre as cidades de Passos e Itaú de Minas. O limite de carga para o caminhão é de nove toneladas. Só de queijo, no entanto, são 9,07 toneladas. A tática é virar à esquerda no trevo de Fortaleza de Minas e depois pegar um desvio de 17 quilômetros em estrada de terra até chegar em São Sebastião do Paraíso. Na BR 491, o caminho segue sem problemas, porém antes de chegar na divisa com São Paulo, onde há um posto da receita estadual, o caminhão sai da rota principal mais uma vez e segue para Arceburgo, em uma estrada de terra de 10 quilômetros de extensão.
Apreensões
“No mês passado tinha uma blitz da polícia nessa estrada de terra e obrigou o caminhão a passar no posto da receita. Recebi uma multa de R$ 10 mil. Os motoristas esperaram lá e a carga só foi liberada depois do pagamento”, conta o queijeiro. Ele deu sorte de não ter a carga apreendida e depois eliminada em um aterro sanitário. Nos cinco primeiros meses deste ano, os fiscais do IMA já deram fim a mais de 34 toneladas de queijo, uma média de 6,8 toneladas a cada mês. O rigor é maior do que no ano passado, quando foram incineradas 68 toneladas de queijo, uma média de 5,6 toneladas por mês. O presidente do IMA, Altino Rodrigues Neto, reconhece o contrabando e diz não ser possível fiscalizar toda a movimentação. “Apesar das leis, o queijo não parou de ser produzido e cada vez aparecem mais rotas”, afirma.
Em São Paulo, a parada seguinte dos contrabandistas de queijo é Mogi Guaçu. Lá, uma Kombi serve de apoio para a distribuição do queijo. Mais adiante, em Holambra, funcionário do queijeiro passam parte da carga para a Kombi. A primeira parada do veículo é um depósito de um supermercado no Bairro São Bernardo, em Campinas. O segundo destino foi o Bairro Parque Industrial, um dos mais nobres da cidade. No Empório Derinho, uma loja sofisticada, o queijo canastra é chamado de “queijo minas meia cura” e custa R$ 14 o quilo, o dobro do que o queijeiro paga.
A terceira parada da Kombi é em um distribuidor de frios na cidade de Louveira. No total, a Kombi e o caminhão do queijeiro fazem 35 entregas em uma dezena de cidades. Uma parte dos compradores também são distribuidores, que repassam os queijios a pequenos estabelecimentos. A exemplo do queijeiro acompanhado pela reportagem, há pelo menos outros 40 somente em São Roque de Minas. Com estratégias semelhantes, eles abastecem outras regiões de São Paulo e do país. “É igualzinho a uma máfia”, compara a mulher do queijeiro. “Quando tem uma fiscalização um liga para o outro e todo mundo fica sabendo”, acrescenta.
Descaminhos
Um complexo esquema é usado para driblar exigências e vender em São Paulo o queijo canastra feito com leite cru
Por dentro do canastra
O processo de fabricação artesanal do queijo canastra de leite cru é considerado patrimônio cultural e imaterial de Minas. Uma lei federal de 1952 exige que o queijo seja curado por 60 dias antes de ser vendido em outros estados. Depois de pronto, o queijo deve esperar esse prazo para que bactérias boas confrontem as bactérias danosas à saúde. Esse processo confere sabor especial ao queijo e garante que o produto não transmita doença.
Como funciona
A produção do queijo canastra de leite cru que vai sem certificação para São Paulo é feita em pequenas propriedades de cidades como São Roque de Minas, Medeiros e Tapiraí. A maioria dos produtores não tem cadastro e não espera o período de 60 dias de cura do queijo, processo para controle de bactérias. Sem a cura por período mais longo não é possível obter o selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF) nem autorização para venda em outros estados.
Como boa parte dos produtores não pode emitir nota fiscal nem vender queijo no mercado formal, os atravessadores entram em cena. Os chamados “queijeiros” montam uma estrutura para levar os produtos para fora do estado, preferencialmente para o mercado paulista. O primeiro passo é comprar o produto nas propriedades mineiras. Funcionários dos queijeiros percorrem fazendas da região em caminhonetes para recolher o produto.
Depois de recolhido, o queijo é levado para galpões, lavado e preparado para o transporte. Os produtos são armazenados em câmaras frias e separados em caixas de acordo com o tamanho e a qualidade. Uma parte chega a receber rótulos falsos de laticínios de outras cidades. A tática é usada para simular que o queijo tem selo do SIF e é feito com leite pasteurizado – e não cru. Os piores queijos são salgados e ralados para ser vendidos a fábricas de pão de queijo.
O passo seguinte é transportar a mercadoria para São Paulo. A reportagem do EM acompanhou o trajeto de um caminhão com 9,07 toneladas de queijo – acima do limite de nove toneladas permitido. O motorista pega rota alternativa, em estrada de terra, para desviar da pesagem obrigatória. Outro trecho sem asfalto é percorrido para evitar posto fiscal e chegar a Mococa (SP). Em Holambra, um funcionário do queijeiro enche uma Kombi de queijos e segue para Campinas para distribuí-los.
As entregas são feitas em um depósito de supermercado e em empório localizado em bairro nobre de Campinas, o Jardim das Indústrias. A exemplo de Campinas, o queijo é distribuído em cidades como Bragança Paulista, Vinhedo, Hortolândia, Valinhos, Indaiatuba, Louveira, Socorro, São João da Boa Vista, Itapira e Atibaia. Parte dos compradores também revende o queijo. O esquema é feito de maneira semelhante por cerca de 40 queijeiros de São Roque de Minas.