“Cansado de andar de tanga, um dia o homem se zanga e sai danado da vida. Mas logo cava um dinheiro, comprando um bilhete inteiro no Campeão da Avenida.” É com os olhos rasos d’água e a voz embargada que Gil Araújo se lembra dos versos recitados pelo avô sobre o negócio que foi a alma da família Araújo Silva durante décadas. Foi, porque desde o dia 30 de outubro a casa lotérica Campeão da Avenida, há quase 90 anos no mesmo endereço – Avenida Afonso Pena, 602, na Praça Sete – não abriu mais as portas.
Antes de decretar o fim, a lotérica, que já foi ponto de encontro de políticos e chegou a vender mais de 8 mil bilhetes por semana, viu o tempo áureo se transformar em decadência. “O problema foi financeiro. No ano passado, a receita líquida foi de R$ 15 mil”, conta Odilon Dumont, que há cerca de 10 anos comprou parte do negócio, tornando-se sócio-proprietário da casa lotérica. Associado ao baixo faturamento, o elevado preço dos aluguéis na região ajudou a pôr um ponto final na história iniciada na década de 1920, quando Belo Horizonte ainda era uma criança, com pouco mais de 20 anos de fundação.
Com três andares de loja, a Campeão da Avenida foi minguando aos poucos, assim como o espaço para atendimento aos clientes. A grande derrocada veio no fim de 2009, com a proibição dos bolões e posteriormente o fim do convênio entre a Caixa Econômica Federal (CEF) – administradora das casas lotéricas – e a Loteria Mineira. As duas atividades respondiam juntas por cerca de 50% do faturamento.
“Já vínhamos em declínio, mas a crise foi agravada há cerca de dois anos”, conta Dumont, que guarda uma história antiga com o Campeão, iniciada em 1975 e que durou quase quatro anos, quando trabalhou lado a lado com um dos fundadores, seu xará Odilon de Araújo Silva.
Gil lembra que o tio Odilon veio para Belo Horizonte no início da década de 20 para ajudar o irmão, Lauro de Araújo Silva a tocar o pequeno negócio de venda de bilhetes que nascia dentro da farmácia do avô. “Meu pai, o Lauro, veio para a capital para estudar. O avô dele tinha uma farmácia ao lado de onde hoje é o Café Nice e ali ele começou a trabalhar engraxando sapatos”, conta.
Cliente habitual, Mariano Raggio, na época a figura que explorava a venda de bilhetes da Loteria Federal no estado, viu no adolescente Lauro um grande empreendedor. “Ele então começou a mandar bilhetes para que meu pai os vendesse”, relata Gil. O que era apenas um complemento à atividade principal de engraxate se tornou o carro-chefe de Lauro, que logo aproveitou o comércio do avô para montar um balcão dentro da farmácia.
Recordista “Ali começou a nascer o Campeão de Avenida. Foi quando meu tio veio de Pitangui, assim como meu pai havia feito anos antes, para poderem trabalhar juntos”, lembra. Foi em 1925, pouco tempo depois da morte do avô, que a fachada da farmácia deu lugar definitivamente ao que viria a ser a maior lotérica do estado. Logo foi aberta a filial na Praça 7, que resistiria durante quase 90 anos. O fundador, Lauro, morreu com 70 anos e pouco tempo depois foi a vez do irmão. Nesse meio-tempo, Gil assumiu os negócios da família ao lado do tio. Ele lembra com nostalgia do movimento dentro do campeão e dos “causos” da época. “Só o Campeão vendia 10% de todos os bilhetes do estado na década de 1970. Já chegamos a vender 100 mil apostas em uma semana”, lembra. “Sem contar que entramos no livro dos recordes como a única casa lotérica onde já foram vendidos os cinco maiores prêmios da Loteria Federal”, acrescenta.
O resultado dos jogos era anunciado à giz em um quadro negro que ficava dependurado na fachada da loja. “Uma vez, o funcionário colocou que o número premiado era 0257. Uma senhora veio mostrar a sua lasca (uma tira de jogo) com o número 00257 chateada porque não tinha ganhado”, conta. “Olhei e vi que ele havia cometido um erro e o número dela foi sorteado, mas fiquei sem jeito de falar com medo da reação que ela teria”, sorri imaginando que a senhora poderia ter um piripaque. O jeito foi contar, e Gil fala aliviado que tudo deu certo e ela saiu comemorando o prêmio.
Ainda no ramo, ele mostra o quadro na porta da lotérica Sempre Campeão. Nele é possível identificar a veia poética passada pelo avô que ainda resiste ao tempo. “Nosso negócio: vender sonhos. Nossa missão: vender jogos lotéricos para manter viva a sua esperança a cada sorteio.”
Chances reduzidas de ganhos
Os altos custos, especialmente com a escalada dos preços dos aluguéis, associados aos baixos rendimentos provenientes dos produtos disponíveis atualmente, estão entre as principais reclamações dos lotéricos que não veem futuro para o negócio. Sem contar a concorrência acirrada no mercado belo-horizontino. “Atualmente são 9 mil habitantes por casa lotérica em BH, quando o ideal é que essa relação fique entre 15 mil a 20 mil por estabelecimento. E devem ser abertas novas licitações”, antecipa o presidente do Sindicato dos Lotéricos de Minas Gerais (Sincoemg), Marcelo Gomes de Araújo.
O reajuste das tarifas pagas por aposta, bilhete ou serviço prestado pela lotérica como correspondente bancário também desanima o setor. “Houve reajuste este ano. O acordo era de chegar a R$ 0,37 por conta paga. Mas no fim, a Caixa destinou apenas R$ 0,35”, afirma Marcelo. Segundo cálculos do setor, há 10 anos, esse valor era de R$ 0,21, elevação que está muito aquém da alta da inflação no período.
Em seminário do setor, realizado em 19 de novembro, que reuniu em Belo Horizonte cerca de 150 representantes dos lotéricos de todo o Brasil, foram definidos os valores ideais para remuneração do empresário. Somente para pagamento do salário dos empregados, a tarifa deveria chegar a R$ 0,51. “Durante o período de 10 anos, o percentual de reajuste do salário dos lotéricos foi de 133%, das passagens de ônibus, de 184% e o do salário mínimo, de 202%”, calculou Marco Antônio Kalikowski, vice-presidente do Sindicato dos Lotéricos do Rio Grande do Sul (Sincoergs). Ex-proprietário de 26 loterias, Odilon Dumont, sócio do Campeão da Avenida, sentiu na pele essas altas de custos e reduziu o número de estabelecimentos para 10, em 11 anos. Procurada por meio da assessoria de imprensa, a Caixa não se manifestou quanto à correção das tarifas pagas aos lotéricos ou às dificuldades enfrentadas pelo setor.
Investimento Os custos para se garantir a concessão de uma lotérica pela Caixa giram em torno de R$ 250 mil. A esse valor se soma a montagem da loja e aluguel do ponto, que podem elevar os gastos para uma média de R$ 400 mil. Retorno financeiro que, segundo cálculos dos empresários, pode demorar cerca de seis anos para ser alcançado já que uma loja gera por volta de R$ 5 mil de lucro líquido ao mês. Em franquias de alimentação, por exemplo, o negócio se paga com 18 a 24 meses de funcionamento. (PT)
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