Em dois tempos de vida do real, o nascimento e a maioridade da moeda, a indústria pouco se reconhece, como mostra a terceira reportagem da série Maioridade do real que o Estado de Minas publica desde domingo. No escritório da Vilma Alimentos, uma das maiores fabricantes de massas do país, o vice-presidente de marketing e vendas, Cezar Tavares, aponta uma revolução nas linhas de produção guiada pelo bem, na forma do controle da inflação e do ingresso de uma classe de consumidores até então excluídos do mercado, mas também influenciada pelo mal do longo período de juros altos e de valorização artificial do real sobre o dólar. A estabilidade derrubou vícios que haviam deixado as empresas escravas da gestão financeira do negócio, e implantou a era do planejamento, agora beneficiada pelo custo mais civilizado do dinheiro, avalia o diretor-presidente da Forno de Minas, Hélder Mendonça.
“Administrar era algo crítico pela incapacidade da empresa de manter os custos atualizados num cenário de inflação alta. Isso mascarou muitas ineficiências até que a indústria se ajustasse”, afirma. A fabricante de pão de quejo, folhados e laticínios viveu momentos marcantes da história da indústria depois do real. A empresa de Contagem, na Grande Belo Horizonte, saiu de uma produção de 3 toneladas mensais da iguaria no começo dos anos 90 para 1,6 mil toneladas por mês ao ser vendida à multinacional americana General Mills no fim da década. Voltou ao controle da família Mendonça em 2009 e hoje produz ao ritmo de 1 mil toneladas mensais.
Em comum, as empresas vivenciaram uma reestruturação que forçou aumento de produção e de eficiência no chão de fábrica. “O novo tempo exigiu produtividade, corte de desperdício e de despesas, além de um fortíssimo processo de gerenciamento de custos para motivar o consumidor. O cliente passou a conhecer o poder de compra da moeda, pediu inovação e já não estocava produtos em casa”, afirma Cézar Tavares. A Vilma praticamente dobrou de tamanho em comparação ao desenho da fábrica em meados dos anos 90.
A indústria de alimentos foi a que mais aumentou a produção física em Minas nos 18 anos do real, com um acréscimo de 238%, conforme levantamento feito pelo analista Antônio Braz de Oliveira e Silva, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele observa que o resultado, bem acima da média de 49,5% do setor industrial no estado, é também reflexo da forte expansão do agronegócio. No Brasil, as fábricas produziram 39,4% mais de janeiro a abril deste ano do que na média de 1994. “O real trouxe a inflação a níveis bem mais baixos, promoveu aumento de renda e aprofundou a abertura do mercado brasileiro aos produtos estrangeiros, mas não resolveu os problemas da carga tributária alta e da infraestrutura ineficiente do país”, analisa Antônio Braz.
Boa parte da elevação do consumo foi atendida pelas importações, com a exposição da indústria brasileira à concorrência internacional, símbolo de tormenta para segmentos como a indústria têxtil. Em Minas, a produção do segmento levou a um golpe de 41,1% de queda no primeiro quadrimestre, em relação à média de 1994. Aguinaldo Diniz Filho, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), afirma que a valorização cambial e a tributação se incumbiram de minguar a competitividade que a indústria adquiriu. “A responsabilidade foi das políticas complementares à criação do real. Em geral, o Brasil seria um país absurdamente pior se o presidente Itamar Franco não tivesse a coragem de implantar a nova moeda”, afirma o industrial.
Grande furo
Uma gestão desastrada de receitas, por meio da arrecadação de impostos, e despesas, com consequências negativas para o crescimento econômico, fez com que a política fiscal se transformasse no grande furo do plano para estabilizar o país, na avaliação de Lincoln Gonçalves Fernandes, presidente do Conselho de Política Econômica e Industrial da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg). “Fizemos um esforço enorme nas privatizações (da mineração, siderurgia, setor elétrico e de comunicações), houve ganhos de escala e foi tudo pelo ralo das contas públicas mal geridas”, afirma.
Guilherme Veloso Leão, gerente da área de estudos econômicos da Fiemg, observa que, com uma política fiscal fraca, o país acabou ficando refém da alta dos juros e do câmbio, ingredientes de um processo de desindustrialização (perda de participação da indústria no conjunto da produção de bens e serviços, medida pelo Produto Interno Bruto, o PIB). Idêntico balanço faz o vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso Dias Cardoso. “As consequências foram uma valorização irreal da nova moeda sobre o dólar e uma transferência de renda brutal da indústria para os bancos”, diz.
Sem saudades do Fusca
Símbolo mais sofisticado da produção da indústria que pegou carona na era do Plano Real, o carro popular chacoalhou o mercado interno, já afetado pela abertura aos importados no início dos anos 90. A ideia de um veículo que o povo pudesse comprar, como justificava o então presidente da República, Itamar Franco, foi lançada em 1993, portanto antes da implantação da moeda. O governo federal assinou acordo com a antiga Autolatina (joint-venture formada pela Ford e a Volkswagen), em razão de um plano de voo abraçado por Itamar para o retorno do Fusca ao Brasil.
Para viabilizar o carro popular, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) foi baixado a 0,1% com a obrigatoriedade de que o modelo tivesse motorização 1.0 e valor máximo de US$ 6,8 mil. Cotado na mesma base de comparação, hoje o popular do presidente morto no ano passado deveria estar na faixa de R$ 14 mil, mas isso não quer dizer o fracasso da ideia, pelo menos para as montadoras, lembra o consultor do setor automotivo André Beer, ex-vice-presidente da General Motors do Brasil e da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). O popular mais barato é encontrado na faixa de R$ 23 mil (US$ 11,2 mil).
“Houve um plano aplicado a um tipo de produto e, como consequência, o programa se expandiu para produtos novos e a preços mais acessíveis”, diz André Beer. Quanto ao Fusca, ele recorda que àquela época o custo de produção era muito menor e se tratava de um projeto sem futuro. “Eu mesmo dizia que colocar o Fusca no mercado seria retroagir do ponto de vista da tecnologia”, afirma. Para o consultor do setor automotivo Luiz Carlos Augusto, o marketing de Itamar se alimentou de um projeto muito mais simples do Fusca em relação às transformações que o mercado viveu.
“A indústria cresceu muito, diversificou os lançamentos e o Brasil passou a ser importante no mercado automotivo. Até então se contava os importados a dedo no país”, afirma Carlos Augusto. De acordo com levantamento do analista do IBGE Antônio Braz de Oliveira e Silva, a indústria de veículos automotores cresceu 72% (em produção física) em relação à média de 1994. Em Minas, o setor cresceu 51,8% em idêntico período.