Há 12 anos nas estradas, o caminhoneiro Dênis Severino Lemos foi rendido e obrigado a beber um litro de cachaça, o que o deixou desacordado por 15 horas num matagal e, para piorar, sem o veículo da empresa. A violência e a falta de infraestrutura nas estradas são apenas alguns dos pontos criticados pelos caminhoneiros para que a regulamentação da profissão tenha efetividade. A inexistência de acostamento e pontos de apoio às margens das estradas dificultam, por exemplo, que os motoristas façam intervalos a cada quatro horas de direção, o que será obrigatório a partir do mês que vem. Contrariados com a falta de condições, ontem, milhares de caminhoneiros de todo o país paralisaram as atividades para reivindicar melhorias para os fretistas. Além da regulamentação da profissão, a lei que possibilita a entrada no mercado de qualquer pessoa e o alto custo do óleo diesel para o frete também são alvos de críticas e, segundo representantes do setor, põem em xeque a sobrevivência da categoria, principalmente dos autônomos.
No Dia de São Cristóvão (santo padroeiro dos caminhoneiros), em Minas, que tem a maior malha rodoviária do país, foram feitas paralisações em pelo menos três rodovias. Na BR-381, próximo a João Monlevade, na tarde ontem mais de 100 veículos trancaram o trânsito nos dois sentidos da estrada. O fluxo só foi liberado às 16h30, depois que três manifestantes foram presos. Já no início da noite, um grupo de caminhoneiros também fechou as pistas da Fernão Dias no km 509, sentido São Paulo. O engarrafamento chegou a quatro quilômetros.
Na BR-354, entre Arcos e Formiga, no Centro-Oeste, caminhões formaram duas filas nas laterais da pista. O “minhocão” se estendeu por mais de 1,5 quilômetro. No Viaduto da Mutuca, na BR-040, entre Nova Lima e Belo Horizonte, o tráfego também foi parcialmente interrompido, causando transtornos para quem saía do Anel Rodoviário rumo ao Jardim Canadá. Segundo a diretoria do Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC), responsável por organizar as paralisações, cerca de 60% dos caminhoneiros do estado aderiram à manifestação. A reportagem do Estado de Minas, no entanto percebeu movimentação praticamente normal nas rodovias Fernão Dias e BR-262 sentido Brasília, onde não houve manifestação.
O motivo da paralisação é que, ao regulamentar a Lei 11.442, a resolução 3.056 modificou uma palavra no texto original, o que afetou diretamente o preço do frete. Inicialmente, apenas empresas que tivessem o transporte de carga como atividade principal poderiam exercer a função, mas, a resolução deu brecha para que qualquer pessoa possa trabalhar como caminhoneiro ao substituir o termo atividade principal por atividade econômica. Segundo entendimento da categoria, a mudança na legislação possibilita que mais de 600 mil veículos de cargas entrem no mercado, inchando o setor e causando redução brusca no valor do frete.
Frete O presidente regional do MUBC, José Acácio Carneiro, afirma que a possibilidade de que qualquer um seja caminhoneiro culmina na desvalorização do frete. Um dos pontos, segundo ele, é que com a facilidade para adquirir crédito muitos principiantes financiam seus veículos e, para pagar as prestações, se veem obrigados a estender a jornada e aceitar valores de transporte muito abaixo da tabela. Ele afirma ser necessário exigir experiência mínima de três anos para se dirigir em estradas, além de curso preparatório especial, habilitação específica e comprovação de renda.
De forma compensatória, o governo criou a legislação para regulamentar a profissão de motorista profissional. Entre outros pontos, eles serão obrigados a descansar 30 minutos a cada quatro horas de direção e têm o direito de repouso diário mínimo de 11 horas. O descumprimento dessas normas caracteriza infração grave e o infrator estará sujeito a penalidades e medidas administrativas, como multas e até mesmo a retenção do veículo. Apesar de considerar positiva a normatização, o sindicato dos caminhoneiros critica a falta de estrutura rodoviária para dar garantias ao cumprimento da legislação como estava previsto inicialmente. “Tem caminhoneiro sendo assaltado com o veículo em movimento. Imagina parado. E nem mesmo tem onde parar. Era preciso ter um acostamento, posto de atendimento para conferir a pressão arterial do motorista e as condições do caminhão. Mas o governo não pensa em fazer a parte dele. Só pensa em arrecadar”, afirma Carneiro. Por isso, o MUBC pediu para que a fiscalização, que começa em 1º de agosto, fosse adiada por um ano.
Legislação Há oito anos na profissão, o caminhoneiro Rodrigo Gonçalves Barcelos, de 27 anos, acredita que o período de descanso praticamente fará dobrar o tempo de viagem em percursos mais longos. “É ruim para a categoria, principalmente para os autônomos”, diz ele. Os efeitos são mais pesados para os motoristas autônomos porque eles precisam rodar exaustivamente para conseguir lucrar, enquanto tal medida é benéfica para aqueles que trabalham com carteira assinada, tendo em vista que as paradas tornam o trajeto menos desgastante. Com isso, a nova legislação pode acarretar em redução drástica dos profissionais autônomos, que respondem por quase 60% do volume escoado pelas rodovias, acabando com o sonho de independência e obrigando que os motoristas se vinculem a empresas.
Motoristas precisam se adequar em uma semana
Um quarto dos motoristas abordados apresentavam irregularidades em relação à lei que regulamenta a profissão. A procuradora do Trabalho, Adriana Souza, considera extremamente positiva a nova legislação no sentido de adequar o motorista às normas trabalhistas brasileiras. “Do jeito que é desenvolvido hoje o transporte não é digno, não é humano”, afirma ela. Em contrapartida, ela admite a impossibilidade do cumprimento integral da lei devido à falta de estrutura das rodovias. “É uma mudança profunda, mas se for para esperar que a infraestrutura saia, nada será feito no país”, crítica.
Na lista de problemas enfrentados pelo setor, o preço óleo diesel é apontado como um dos principais vilões por onerar o custo das operações. Cálculo feito pelo Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC) mostra que o gasto com combustível corresponde a mais de 30% do valor total do frete, mas, dependendo do tipo de carga, a fatia pode chegar a 50%. Com isso, parte significativa do lucro do caminhoneiro é destinado ao pagamento do diesel.
No início do mês, a Petrobras anunciou o segundo aumento do preço do óleo diesel no ano. O preço do produto na refinaria teve reajuste de 6%, com repasse para o consumidor de 4% a 6%. Duas semanas antes, a companhia já havia reajustado o valor em 3,9%, mas a variação não foi repassada para as revendas devido à isenção da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). Em Minas, o impacto é ainda maior. Desde 1º de janeiro o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) teve majoração da alíquota, o que, segundo representantes do setor, tem feito com que muitos transportadores optem por abastecer em estados vizinhos.
Em nota, Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) afirmou que no mês que vem será realizado fórum do transporte de cargas para a discussão das novas regras de regulação do setor e “o equacionamento de outras demandas”. Além disso, a agência reguladora disse estar à disposição dos transportadores para discutir e efetivar medidas que visem “harmonizar” os interesses de prestadores e usuários do serviço. (PRF e PHL)