Ex-professora primária, Eunice Rodrigues Leal, de 37 anos, ganhava a vida alfabetizando crianças num distrito de Cônego Marinho, no Norte de Minas. O vencimento era inferior a um salário mínimo, o que levou a educadora a arrumar as malas e tentar a sorte em Belo Horizonte. Na capital, conseguiu emprego como doméstica. A remuneração, de um salário e meio, permitiu melhorar o padrão de vida. Porém, há três anos ela teve um filha, Stéfani, e um dilema: quem poderia cuidar da criança enquanto ela arrumava a casa dos patrões? O socorro veio por meio de uma vizinha, que se comprometeu a tomar conta da menina em troca de ajuda financeira.
Situações como essa são comuns entre os empregados domésticos. Nem sempre a mãe que trabalha em casa de família consegue uma vaga em creches. Tampouco tem um parente disponível para cuidar da prole. Resultado: a doméstica precisa reservar parte de seu salário para contratar outra mulher, geralmente uma vizinha, disposta a ser uma espécie de “babá da empregada”. Esse é o tema da quarta reportagem da série “Onde a lei não alcança”, que o EM publica desde domingo.
“Embora tenha ocorrido nos últimos 10 anos um aumento do rendimento médio dos domésticos (o salário da categoria cresceu 78,7% de 2002 a 2012), notamos que ainda é bem inferior em relação à média das outras profissões (a alta foi de 17,7% em igual período)”, afirmou a Gabrielle Selani, coordenadora da Pesquisa de Emprego e Desemprego do Dieese.
Há poucos meses, Eunice, a ex-educadora que agora ganha a vida como doméstica, conseguiu vaga para que a filha estudasse numa creche perto de casa, no Bairro Saudade, na Região Leste da capital. “Trabalho de segunda a sexta, das 8h às 16h. Aos sábados, quando folgo como doméstica, faço bico como diarista. Ganho mais R$ 80, porém, preciso pagar R$ 15 para que uma vizinha olhe minha filha”.
Ajuda em casa
Essa vizinha é Maria Isabel de Andrade Silva, de 53. Ex-doméstica, ela deixou a profissão em razão da gravidez de uma filha: “Minha neta nasceu e decidi ajudar na criação. Quando deixei de trabalhar na casa de família, não tinha direito ao FGTS, a hora extra… Se fosse hoje, com a aprovação (da PEC das Domésticas, promulgada pelo Congresso no início de abril), continuaria na labuta”, diz Maria Isabel.
“Já olhei crianças de muitas empregadas. Cobro, por mês, R$ 150”, completa Maria Isabel, que mora no Bairro Saudade. Distante de lá, no Letícia, em Venda Nova, Valéria de Queiroz Rosa, de 42, perdeu a oportunidade de trabalhar na casa de uma família porque não conseguiu matricular o filho numa creche. Tampouco uma babá informal. “Foi difícil perder um emprego que estava certo”, desabafa a mulher. Ela só começou a trabalhar numa casa de família anos depois, quando a irmã, Vanda, e a mãe, dona Geralda, lhe asseguraram que iriam olhar seus meninos.
“O Emanuel (de 7 anos) estuda pela manhã. Depois da aula, ele vem aqui para casa e fica comigo o tempo todo. Dou a vida pelos meus netos, porque avó é mãe duas vezes”, diz a avó coruja. Atualmente, para não sobrecarregar a mãe, Valéria trabalha como diarista três vezes por semana. “Ganho R$ 80 por faxina. Se precisasse pagar um jardim de infância ou alguém para olhar meu filho, não sei como faria”.
Multa de 40%
O governo pretende manter a multa de 40% sobre o FGTS para o patrão que demitir um empregado doméstico sem justa causa. De acordo com o ministro do Trabalho, Manoel Dias, a proposta faz parte do documento elaborado pela pasta para regulamentar a emenda constitucional que trata sobre o trabalho doméstico. O documento será enviado até sexta-feira à Casa Civil. Dias destacou, no entanto, que a palavra final será dos parlamentares. O relator da comissão mista do Congresso, senador Romero Jucá (PMDB-RR), quer reduzir o percentual para 10% no caso de demissão do trabalhador, ou 5% se as duas partes combinarem o fim do contrato. Ontem, o ministério lançou a Cartilha do Trabalhador Doméstico e o Manual do Trabalhador Doméstico. O material está disponível no https://portal.mte.gov.br/trab_domestico/trabalho-domestico.htm.
Quando é preciso deixar o emprego
A vida de Flaviana Silva Fidélis, de 33 anos, nunca foi fácil. Nascida e criada em Ribeirão das Neves, na Grande BH, onde a falta de emprego com bons rendimentos atormenta a maior parte dos moradores, ela trabalha na casa de uma família em Nova Lima, também na região metropolitana. Seu salário, de R$ 726, é insuficiente para garantir uma vida caprichosa às filhas, Karen, de 10, e Mariana, de 1. Mas a situação já foi pior: até há alguns meses, Flaviana, que é viúva, precisava desembolsar R$ 140 mensais para que uma babá informal cuidasse de suas crianças enquanto ela garantia o ganha-pão na casa da patroa.
Há pouco mais de 30 dias, porém, sua cunhada, Cristiane Batista, de 26, começou a ajudá-la. Técnica em enfermagem, ela se ofereceu para tomar conta da caçula em sua casa. O pagamento se resume à alegria que Mariana trouxe à residência de Cristiane, irmã do falecido marido de Flaviana. “Os traços de minha sobrinha são parecidos com os do meu irmão, que morreu no ano passado. Estou à disposição para ajudar no que for preciso”, diz Cristiane.
Já Marlene de Fátima Pereira da Silva, de 38, cuida de Nassif Júnior, de 5, filho da prima dela, Cláudia Macedo, que trabalha como empregada doméstica na Zona Sul de Montes Claros. Segundo ela, o pai do garoto, que é pedreiro, ajudou na obra de um “puxadinho” no barraco onde mora. “Ele não me cobrou pelo serviço e o fato de eu cuidar da criança acabou servindo como pagamento”, disse Marlene.
Há quatro meses, a também moradora de Montes Claros Lucilia Teixeira da Silva, de 23, precisou deixar o serviço para cuidar do filho Gabriel, de 2. Ela conta que ganhava um salário mínimo, com carteira assinada, e pagava uma pessoa para cuidar do menino enquanto saía para trabalhar. “Desembolsava R$ 150, mas apessoa que cuidava do meu filho aumentou o preço para R$ 250. Não tive como pagar mais. Fui obrigada a sair do emprego”. (PHL/LR)