A última terça-feira foi um dia especial para dona Enerenciana Alves Rodrigues, de 72 anos: “Completei quatro décadas de serviço na casa de minha patroa, que sempre foi correta com os meus direitos trabalhistas”. Dona Enerenciana, porém, é minoria entre os cerca de 6,6 milhões de brasileiros que ganham a vida prestando serviços em casas de famílias – especialistas avaliam que 70% deles estejam na informalidade. Apesar de a chamada PEC das Domésticas corrigir uma injustiça histórica, ampliando direitos trabalhistas da categoria, a expectativa é de que muitos profissionais só tenham acesso às novas garantias se recorrerem à Justiça do Trabalho.
Isso porque a fiscalização, no Brasil ainda não é coerente com a nova lei. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), por exemplo, não apura irregularidades entre patrões e domésticos. Já o Ministério Público do Trabalho (MPT) só atua em ações coletivas. “O domicílio é inviolável. Por isso nunca se fiscalizou a relação de emprego doméstico no país”, explica a chefe da seção de Relações do Trabalho do MTE em Minas Gerais, Alessandra Parreiras. As questões jurídicas e a realidade desses trabalhadores são temas da última reportagem da série “Onde a lei não alcança”, que o EM publica desde domingo.
Ainda de acordo com Alessandra Parreiras, embora não ocorra a fiscalização da relação de emprego doméstico, há orientação para patrões e empregados. “A relação de emprego doméstico nunca foi verificada, a não ser pelas informações obtidas por eles nos plantões fiscais de orientação trabalhista (que ocorrem diariamente, das 9h às 13h)”. A busca por informações, continua a especialista, ocorre com frequência muito antes da nova lei: “Eles nos procuram para esclarecer dúvidas como o cálculo da rescisão contratual”. Alessandra afirma que essa orientação, no entanto, não garante o cumprimento da lei pelo empregador.
Segundo a procuradora do Trabalho Elaine Noronha Nassif, é possível prever hipóteses em que o MPT poderá atuar, exigindo o cumprimento dos direitos trabalhistas dos domésticos – principalmente perante empregadores, pessoas físicas, que tenham um certo número de trabalhadores e sejam recalcitrantes no cumprimento dos seus deveres como empregadores domésticos. No entanto, ela reforça que situações individuais, que não envolvam direitos indisponíveis, como os relativos à saúde do trabalhador doméstico, não são objeto de ação por parte do MPT, mas sim dos advogados dos sindicatos dos trabalhadores domésticos ou mesmo da Defensoria Pública Federal.
INTERIOR
Para Andréa Vasconcellos, professora de direito do trabalho da Fumec, muitos trabalhadores continuarão à margem da nova lei. A situação, alerta a doutora, é pior no interior e zonas rurais. “A perspectiva de mudança nesses lugares é nenhuma, principalmente por estarem muito distantes da Justiça . Não acho que a lei vai mudar o resquício de escravidão que ainda existe no país”, prevê. Entretanto, nos grandes centros, a professora acredita que a Lei das Domésticas terá melhor resultado que no interior, pois as pessoas têm maior acesso à informação.
S. S. D, de 36, recorreu à Justiça do Trabalho para reclamar que trabalhou como empregada doméstica em uma casa em Montes Claros, no Norte de Minas, durante 10 meses, sem carteira assinada, e que foi dispensada sem receber seus direitos. Perante o juiz, ela acabou aceitando um acordo com o ex-patrão, recebendo R$ 1,4 mil referente a férias, vale-transporte e décimo terceiro salário, tendo também a carteira assinada. “Fiquei feliz com o acordo porque recebi meus direitos”, conta a mulher, que não quis se identificar. Ela, agora, trabalha como diarista, recebendo R$ 40 por dia.
Entrevista
Desembargadora Deoclécia Amorelli Dias
Presidente do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT-MG)
“Não teremos problemas para assumir a nova demanda”
Paulo Henrique Lobato
Embora a maioria dos domésticos sejam informais em BH, o número de reclamações trabalhistas é considerado baixo. Foram 274 entre 1º de janeiro e 22 de abril, menos de 1% dos processos recebidos pelas 40 varas da capital. A presidente do TRT em Minas, desembargadora Deoclécia Amorelli Dias, avalia que, caso ocorra uma explosão de ações, devido à nova lei, a Justiça do Trabalho está preparada para assumir a nova demanda.
Como a senhora avalia a promulgação da chamada PEC das Domésticas?
A nova lei veio em boa hora, mas é preciso ter cuidado com a regulamentação (dos tópicos necessários, como a alíquota do FGTS) para que a PEC não seja descaracterizada.
A Justiça do Trabalho e o TRT estão preparados para a possível alta na demanda de reclamações trabalhistas, uma vez que a nova lei ajudou na divulgação dos direitos dos domésticos e que boa parte da categoria (especialistas estimam que 70%) trabalham na informalidade?
Estamos preparados. Hoje temos 53 cargos vagos entre juízes e deembargadores, mas acredito que não teremos problemas para assumir a nova demanda, pois o número de reclamações envolvendo domésticos é pequeno.
É um número extremamente baixo?
Para se ter ideia, em Belo Horizonte, onde há 40 varas do Trabalho, foram 274 reclamações em 2013, sendo 71 em janeiro, 69 em fevereiro, 63 em março e 71 em abril (até o dia 22). As 274 reclamações representam 0,95% das 28.835 ações (ajuizadas) em Belo Horizonte até 22 de abril desse ano. O balanço na capital é o maior em Minas. O número pode ser baixo por pouco conhecimento do empregado doméstico sobre seus direitos ou porque, pelo lado positivo, os empregadores estejam cumprindo a lei.
Propostas na casa civil
A proposta de regulamentação da nova Lei das Domésticas que está sob a mesa da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, estabelece três parcelas de seguro-desemprego, podendo chegar até cinco mensalidades e adicional noturno de 20% sob o valor da hora de trabalho. Além disso, a reportagem apurou que o texto determina um descanso mínimo de 30 minutos durante a jornada de trabalho, desde que esteja acordo entre patrão e empregado em um contrato, contribuição patronal de 8% do valor salário pago para o FGTS e multa de 40% referente ao valor do saldo da poupança em caso de demissão sem justa causa. (Antonio Temóteo)
Série retratou a realidade
A série “Onde a lei não alcança” começou a ser publicada pelo Estado de Minas no domingo, 21 de abril, e abordou o emprego doméstico que ainda hoje se encontra à margem das novas regras que igualam os trabalhadores do setor aos demais. No interior de Minas, a pobreza e a falta de oportunidades empurra menores para o trabalho nas cidades polo, mesmo que sem carteira assinada, em condições degradantes e com salários bem abaixo do mínimo. Na Grande BH, empregadas domésticas e babás que trabalham na capital com todos os direitos assegurados também recorrem à mão de obra informal na hora de deixar os próprios filhos. Se em Brasília legisladores buscam ampliar os direitos da categoria, nos rincões do país tudo indica que a lei ainda vai demorar para valer.