Brasília – Com R$ 782,4 bilhões para gastar por ano – uma cifra que não para de crescer –, a classe C virou a queridinha do mercado, mas nem sempre é tratada com o merecido respeito. Quase metade dos domicílios brasileiros – 48,6% – se encaixa nessa faixa social, responsável por quase um terço do potencial de consumo do país. As estratégias para atingi-la, no entanto, por vezes revelam despreparo, falta de conhecimento do público-alvo e mesmo preconceito.
Quando as tevês por assinatura, por exemplo, despertaram para a euforia em torno do poder de compra da população emergente, algumas operadoras lançaram “pacotes especiais”, com valores bem abaixo da média. Ao contratar o serviço, os clientes não tinham acesso aos canais mais vistos e badalados da programação fechada. Resultado: uma debandada de consumidores insatisfeitos obrigou as empresas a reverem as opções.
Alvoroçado com a classe C e com o lucro que ela pode representar, o mercado acaba errando na aposta, no entender do diretor do iPC Maps Consultoria, Marcos Pazzini. “A maioria ainda não entendeu quem é a nova classe média. Falta pesquisa e preparo. As estratégias surgem da cabeça dos executivos, e eles acabam dando ‘tiro no pé’ e ‘queimando’ a empresa”, comenta. Retirar atributos de produtos ou serviços para vender mais barato, acrescenta ele, não é, nesse caso, a alternativa mais viável.
Na última semana, as donas de casa Aureny Soares, de 38 anos, e Valdelina da Silva, de 34, se revoltaram com promoções estampadas nas vitrines de um shopping no Centro da capital do país. Sandálias de péssima qualidade, na avaliação delas, eram anunciadas na liquidação. “Isso é uma falta de respeito com a gente: está barato, mas é descartável”, justificava Aureny. “A gente quer coisa boa também”, emendava a amiga.
Imaginar que as classes de renda mais baixa se contentam com pouco é o principal erro das empresas diante da nova realidade de consumo no Brasil. “O dinheiro do pobre é o mesmo dinheiro do rico. É a mesma moeda. Vale a mesma coisa”, comenta a atendente comercial Elaine Arruda, de 31, e igualmente indignada com as tentativas das empresas de fisgar a classe emergente a qualquer custo. “O que a gente vê é muita enganação”, completa.
Não se pode, avalia o consultor de varejo Alexandre Ayres, exigir que produtos e serviços sejam oferecidos de maneira isonômica. É com base no modelo de negócios da empresa, explica ele, que os preços e até a qualidade são definidos.
Falta de amadurecimento
A atenção para a falta de “amadurecimento do mercado” em relação à classe C é também destacada por Ayres. “Não se pode generalizar, mas ainda existe muito pré-julgamento e uma dose considerável de situações anormais”, afirma o especialista.
Desde 2004, puxado justamente pelo avanço da classe C, o comércio brasileiro cresceu, em média, 8% ao ano e obteve os melhores resultados da história. A força do consumo vindo das periferias já deixou de ser novidade e, ainda assim, segue desafiando o mercado. No varejo, exemplifica Ayres, muitas vezes a aparência do consumidor determina o tratamento dado a ele, embora nenhum supervisor de vendedores ou gestor reconheça essa diferenciação.
Problemas no embarque
O mercado da aviação é outro exemplo clássico para ilustrar a relação de interesse e, ao mesmo tempo, de desdenho pela classe C. À nova classe média deve-se o salto gigantesco na demanda por voos domésticos na última década no país. Foram os brasileiros que até então só viajavam de ônibus que ajudaram a tornar a situação financeira das companhias menos traumáticas. Em contrapartida, boa parte desses consumidores sente-se excluída nos aeroportos.
Na quarta-feira, o Estado de Minas encontrou a auxiliar de serviços gerais Luzirene Belarmino, de 40 anos, perdida no aeroporto de Brasília. A menos de 40 minutos para o horário do voo, ela tentava concluir o check-in, sem nem saber o significado do procedimento. A cearense chegou a entrar na fila de embarque internacional. “Tudo aqui é difícil. As pessoas mandam você para um lado e para o outro, e ninguém dá informação direito”, reclamava.
Era a primeira vez que Luzirene viajava de avião. Antes, a moradora de Fortaleza só havia pisado em aeroporto para receber parentes. “Só vim voando porque era emergência. Mas não gostei da experiência, achei mal sinalizado”, observou ela, que veio à capital do país para enterrar a mãe. Por dois dias tentou comprar a passagem de volta, paga em dinheiro. Ouvia das atendentes que não era possível porque as aeronaves estavam cheias. “Acho que era isso, não entendia nada.”
As companhias aéreas, diz o consultor Marcos Pazzini, sabem atrair e frustar a classe C. “Ainda bem que estou acompanhado de gente mais desenrolada do que eu. Se viesse sozinho, não saberia como fazer”, confessou o indígena mineiro Wellington Oliveira, de 23, que também estreou em aeroporto na última semana e reclamou da falta de boa vontade dos funcionários. “Tinha que ter mais gente disposta a ajudar, a orientar quem não sabe das coisas”, sugeriu.
Desigualdade Governo e empresas incentivaram agressivamente o consumo entre as classes emergentes, reforça o economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC) Fabio Bentes. Faltou, conclui ele, criarem as condições necessárias para absorver essa demanda. “Ainda é difícil mensurar exatamente onde está o problema, mas ele existe”, pondera Bentes, alertando para a “inquietante desigualdade” no tratamento e na oferta de produtos e serviços.
Apesar de o assunto não ser tratado de maneira escancarada, o que há ainda muito latente no Brasil é um preconceito em relação à classe C, na opinião do presidente do Walmart.com para a América Latina, Fernando Madeira. “O mercado quer esses clientes, mas ainda não entendeu direito ou não quer entender os desejos de consumo deles”, sustenta. No mundo virtual, defende o executivo, fica mais fácil encarar os consumidores de maneira isonômica e perceber a sofisticação exigida por eles.