Segunda maior religião do mundo e a que mais cresce em número de fiéis, o islamismo ainda está distante do cotidiano da maioria dos brasileiros. É também a segunda religião cuja relação com as finanças é abordada na série “Dinheiro e fé”, que o Estado de Minas publica desde domingo. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, num país de quase 200 milhões de habitantes, apenas 40 mil se declaram muçulmanos, apesar de as entidades islâmicas assegurarem a existência de 1,7 milhão de seguidores em terras nacionais.
Tamanha divergência dá a dimensão da disparidade nas informações em torno do islamismo no Brasil, sobretudo quando o assunto é dinheiro – um tabu entre os seguidores. Por princípio, a economia da fé muçulmana é bem distinta das demais religiões. O pressuposto básico da comunidade islâmica (Ummah) diz que os bens não são apenas para o conforto próprio, mas para o de todos. A prática inclui a divisão das riquezas, criminaliza a usura — ganhar dinheiro com juros, por exemplo, é proibido — e obriga o pagamento de tributos para a distribuição de recursos aos necessitados.
A despeito de valorizar o desprendimento material, dificilmente líderes religiosos, praticantes ou mesmo especialistas divulgam valores que envolvam a gestão administrativa e financeira do islamismo, que recebe muito apoio internacional de países muçulmanos, sobretudo do Oriente Médio e do Norte da África. Para a Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ), é difícil apontar números, pois cada mesquita e instituição islâmica é mantida de acordo com as doações de seus frequentadores e colaboradores.
“Em comunidades islâmicas grandes, como as de São Paulo, por exemplo, as contribuições, evidentemente, são maiores do que em mussalas (salas de oração) de cidades do interior. E cada entidade cuida de sua situação econômica, de modo que não temos como falar em valores arrecadados e gastos”, afirma a SBMRJ. Que ressalta: no Brasil, os únicos bens materiais do islã são as mesquitas, os centros, as mussalas, as escolas e os cemitérios.
Na avaliação de Eduardo Santana, aluno do Instituto Latino-Americano de Estudos Islâmicos (Ilaei) e ex-presidente do Centro Islâmico do Recife (CIR), a comunidade muçulmana no país movimenta cifras consideráveis. “Mas ter um controle sobre os recursos não é fácil. Algumas entidades preferem manter costumes tradicionais, que envolvam a arrecadação direta. Assim, na oração da sexta-feira (Salatul’Jumuah), as ofertas são colocadas de forma visível. O que é arrecadado, na maior parte das vezes, é destinado às obras sociais e à manutenção dos templos”, explica.
PRINCÍPIOS Todas as verbas para manter uma mesquita vêm dos próprios fiéis e de doações nacionais e internacionais, diz Santana. O Centro Islâmico do Brasil, a maior mesquita da América Latina, instalada em Brasília (DF) desde 1990, é totalmente financiada pela Embaixada da Arábia Saudita no país. No terreno com 2,8 mil metros quadrados estão dispostos três prédios nos quais funcionam a escola, que oferece aulas de árabe, a mesquita, com capacidade para mil pessoas, e a casa do sheikh Mohammed, líder religioso.
O sheikh explica que o islã permite a seus fiéis trabalharem para sustentar suas famílias, mas, como a religião prega a caridade, é proibido guardar dinheiro em bancos enquanto outros muçulmanos estão passando por necessidades. “Um dos nossos pilares é dar 2,5% da renda anual para caridade”, explica. A prática islâmica, ou a Sharia, estabelece cinco princípios e define a vida dos fiéis, com relação ao comportamento, dinheiro, atitudes e alimentação (veja quadro).
Para entender como fazer investimentos no islã, Ahmed El Helw, presidente do Banco Islâmico Makaseb, a maior instituição financeira privada entre 22 países árabes, explica, em palestra traduzida pelo professor Samir El’Hayek, que os bancos do islã ou ganham ou perdem junto com seus clientes. “O foco não é o lucro, mas o bem que o investimento vai fazer à comunidade”, diz.
O imposto, ou Zakat, é uma obrigação que força os fiéis a não multiplicarem seus ganhos, optando por dividi-los com os outros. “Se o muçulmano guardar dinheiro, o lucro vai aumentar e o Zakat também. Isso força os investimentos no bem comum”, ressalta o banqueiro. Para descrever como os juros são prejudiciais à economia, ele lembra que, em 2008, quando mergulharam em uma grave crise, os Estados Unidos decidiram zerar suas taxas. “Adotaram a prática do islã, porque juro é algo muito, muito ruim”, destaca.
Única mesquita de MG fica em BH
O integrante da comunidade islâmica em Belo Horizonte Daniel Yussuf conta que a única mesquita do estado fica na capital, onde se reúnem brasileiros convertidos, libaneses, marroquinos, egípcios, sírios, mais diversos africanos, indianos, paquistaneses, todos residentes ou em temporada na capital. Fundada em 1991, a mesquita segue o modelo marroquino e conta com mais de 200 membros registrados. No entanto, Yussuf afirma que somente cerca de 40 são assíduos.
A mesquita não tem um fundador único, mas uma comunidade que se juntou para erguer a sede. Hoje ela é dirigida pelo sheikh Mokhtar, marroquino e comerciante em Belo Horizonte que orienta e administra a mesquita espiritualmente. A figura do Sheikh é provisória e o líder pode ser retirado do cargo se a comunidade achar que ele está descumprindo o seu papel. “Não é como na religião católica, que um padre é para sempre padre. O sheikh é o nosso líder provisório e pode ser substituído se não cumprir seu papel”, afirma Yussuf.
Sobre as cifras movimentadas pela comunidade na capital, Yussuf afirma não ser possível mensurar o montante, uma vez que a mesquita vive de doações. “Funciona de acordo com a necessidade. Se precisamos fazer uma obra, os membros que têm mais condições é que fazem as doações”, revela. Ele explica ainda que há outras formas de ajudar, como comparecendo à mesquita e fazendo as orações. De acordo com ele, é proibido tirar o sustento da família, colocá-la em dificuldade para doar à igreja. Doa-se apenas quando se pode.
Algumas mesquitas brasileiras aceitam doações vultuosas de países como Arábia Saudita e Paquistão e acabam presas à política do Estado em questão. Em Belo Horizonte, a prática não é bem-vinda. “O oferecimento é dos membros da comunidade islã de Minas ou dos que já viveram aqui e hoje moram em outros países. Dessas doações é que pagamos o salário do sheikh e todas as despesas da mesquita”, diz Yussuf.