Brasília – A maioria dos brasileiros desconhece os meandros do setor público. Não à toa, muitos se surpreenderam quando, há pouco mais de uma semana, a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público (MP) revelaram um esquema de corrução que pode ter desviado R$ 19 bilhões dos cofres públicos, dinheiro suficiente para bancar quase um ano do programa Bolsa Família. Os desmandos foram descobertos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), espécie de tribunal em que os contribuintes multados pela Receita Federal podem questionar a punição e os valores cobrados.
Apesar de toda a publicidade dada ao caso pela Operação Zelotes, que gerou indignação Brasil afora por mostrar como a corrupção está entranhada no sistema público, o Carf continua sendo um estranho aos olhos dos cidadãos mais simples. O que chama a atenção é que o conselho que está sob suspeição é apenas um dos vários tribunais que operam nas sombras, muitas vezes favorecendo os que têm mais dinheiro e conhecimento para se livrarem de punições impostas pelos órgãos fiscalizadores do país.
Se no Carf pode-se questionar as decisões da Receita, no Conselho de Recursos do Sistema Financeiro, o chamado conselhinho, estão em jogo as determinações do Banco Central (BC) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Há ainda a Câmara de Recursos de Previdência Complementar, responsável por avaliar as multas aplicadas aos fundos de pensão pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), e o Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS), que analisa litígios entre segurados e o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Além da falta de transparência, esses tribunais têm em comum o excesso de burocracia, principalmente quando o objetivo é adiar punições que possam resultar em desembolsos por gente graúda. Quem se dá ao trabalho de acompanhar o dia a dia dos conselhos garante que eles não foram feitos para favorecer os pequenos, mas, sim, os que têm as melhores relações e, claro, dinheiro.
Essa postura é visível no Carf. “O tribunal não coloca processos em pauta pela ordem de entrada. Leva em consideração os valores, sendo os maiores julgados primeiro”, diz advogado Milillo Dinis, autor do livro Lei Anticorrupção Empresarial. Porém, mesmo estando entre as prioridades, os processos de grandes devedores não têm decisões rápidas, devido ao excesso de questionamentos. É uma forma de os grupos responsáveis por negociar as sentenças terem tempo para achacar os devedores. “Sempre achei que o fisco queria mais dinheiro. Agora, começo a pensar que é porque a propina corre solta”, acrescenta.
Irregularidades Por enquanto, as investigações conduzidas pela PF e pelos MPs se concentram no Carf, vinculado ao Ministério da Fazenda. Mas isso não quer dizer que os demais conselhos já não tenham cometido irregularidades ou tomado decisões, no mínimo, controversas. Milillo Dinis é enfático ao se referir aos tribunais administrativos: são muito frágeis, sem tradição institucional, e não conseguem construir elementos capazes de impedir que a corrupção se instale. “Vejo os conselhos vulneráveis pela falta transparência, o que permite a captura de interesses públicos por privados”, frisa.
Apenas para os coitadinhos
Dentro do governo, os defensores dos conselhos garantem que o esquema de corrupção no Carf é um fato isolado. E sustentam que o desempenho dos tribunais é muito bom, com a maioria das punições determinadas pelos órgãos fiscalizadores sendo ratificadas. Não é bem assim. No Carf, 95% das multas aplicadas pela Receita Federal são mantidas. Só que os 5% restantes dos processos representam mais de 90% das cobranças referentes a impostos sonegados.
Esses números, só endossam o discurso de Paulo Roberto Cortez, auditor fiscal aposentado e ex-conselheiro do Carf que teve conversas grampeadas com autorização judicial. “Só os coitadinhos têm de pagar impostos. Os grandes fazem negociata para reduzir as multas. E os que não fazem que se f…”, afirma. Cortez é um dos cabeças do esquema revelado pela Operação Zelotes. Foi ele quem deixou claro, nas gravações, o quanto servidores da ativa e aposentados, advogados e lobistas estavam sugando os cofres públicos. Dos R$ 19 bilhões em irregularidades investigados pela PF e pelo MP, quase R$ 6 bilhões já foram comprovados.
TRIBUNAIS DE RECURSOS OPERAM NAS SOMBRAS