As contas de luz dos brasileiros, com aumento médio de 50% este ano, comprovam a crise de oferta de energia pela qual passa o país, extremamente dependente da geração hidrelétrica e abalado por uma seca histórica. Apesar das condições adversas e de precisar adicionar 5 mil megawatts (MW) de energia nova por ano ao sistema, o Brasil deixou de agregar 3,5 mil MW em um projeto de integração energética com a Bolívia por falta de decisões políticas do governo. A afirmação é do coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), Nivalde de Castro, palestrante da conferência Integração Energética Regional: desafios geopolíticos e climáticos, promovida pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) em parceria com a Fundação Konrad Adenauer Stiftung.
O especialista aponta os projetos de integração com outros países da América Latina (AL), com diversificação da matriz energética, como uma saída para cobrir o período de seca, por conta da limitação estrutural do Brasil, que não consegue mais construir usinas hidrelétricas com grandes reservatórios. “A nossa necessidade anual, de elevar em 5 mil MW a capacidade instalada, é o equivalente a três vezes a demanda da Bolívia. O Brasil tem 50% da capacidade total da América do Sul e também 50% da demanda”, explica. Castro garante que o país tem papel estratégico e catalizador para desenvolver a integração energética regional, porém não há sensibilidade, nem do Ministério de Minas e Energia (MME) nem do Itamaraty, em liderar o processo. “O projeto da usina binacional no Rio Madeira, em cooperação com a Bolívia, está pronto há cinco anos, mas faltam definição política e decisão de governo para incluí-lo no planejamento energético”, alerta, lembrando que o país detém o conhecimento técnico para implantar o projeto, uma vez duas outras usinas estão em construção no mesmo rio, Jirau e Santo Antônio.
As barreiras para implantar projetos binacionais ou multinacionais de energia são muitas, desde as diferenças políticas entre nações até obstáculos regulatórios e de mercado, mas há consenso entre especialistas da América Latina de que seria a melhor alternativa para a região. Liliana Díaz, pesquisadora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e da Universidade Johns Hopkins, explica que a demanda é crescente em toda a AL e há necessidade de políticas de integração entre países para atender o consumo. “O crescimento econômico da AL deve ser de 3% ao ano. Se isso se confirmar, a demanda por petróleo vai crescer 42% e a de energia, 55%, até 2040. A necessidade de investimentos será extremamente elevada, estimada em US$ 430 bilhões até 2040”, afirma.
ESPERA Apesar de a necessidade de novos projetos ser cada vez maior, o processo de integração está em compasso de espera, alerta o professor da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso) do Paraguai Gustavo Dodas. “O impulso que houve com a criação de um conselho de energia em 2006 acabou, em parte por conta dos problemas econômicos dos países da AL, com reordenamento dos sistemas de financiamento, mas também porque cresceu a oposição à integração na região. O compasso de espera obrigou os países a buscar soluções domésticas”, lamenta.
Os dois maiores exemplos bem-sucedidos de integração energética do mundo, curiosamente, vêm do Brasil, que construiu em parceria com o Paraguai a Usina Hidrelétrica de Itaipu, e, com a Bolívia, o gasoduto Brasil-Bolívia. “A durabilidade desses dois exemplos, um da década de 1980 e outro do final dos anos 1990, mostram o quanto a integração energética é importante. Quando eles foram construídos, essa expressão nem sequer existia. E o primeiro foi criado em meio a dois governo ditatoriais”, lembra o professor da Universidade Federal do ABC Igor Fuser.
Entre os benefícios da integração, Liliana Diáz, do Cebri, cita a otimização de recursos com a complementaridade geográfica dos países, maior diversificação energética e economia de escala, além de redução dos riscos de confiabilidade dos sistemas. “Custos ambientais são mitigados com intercâmbio na produção de energia na América Latina, que também amplia a possibilidade de investidores”, enumera.
A resistência permanece, de acordo com os especialistas, ainda que existam outras formas de intercâmbio, além da construção de projetos binacionais ou multinacionais. “Existem interconexões que permitem intercâmbio de energia, como Brasil e Argentina e Colômbia e Equador”, assinala Liliana. Em plena crise energética, o Brasil se valeu desse intercâmbio para importar energia da Argentina logo após o apagão de janeiro deste ano. Para o coordenador do Gesel, Nivalde de Castro, contudo, esse tipo de acordo por oportunidade, em que um país utiliza a energia de outro em momentos emergenciais, não estimula investimentos. “São os contratos de longo prazo, para grandes projetos, que viabilizam os financiamentos. A garantia de compra de energia em 20 anos, 30 anos, com a redução do preço do MW, com em Itaipu, que passará de US$ 35 para US$ 4 em 2026, é que são atrativos. O Gasbol também prevê o consumo de 34 milhões de metros cúbicos de gás por dia. São essas certezas que tornaram esses dois casos bem-sucedidos”, destaca Castro, que defende a ampliação de projetos binacionais.
Desconfiança é traço comum
A falta de vontade política para tornar esses projetos realidades no entanto, não é exclusividade do Brasil, apontam os especialistas. Vários países desconfiam dos projetos binacionais ou multinacionais e criam barreiras. Mas existem outros obstáculos, como entraves jurídicos, comerciais e técnicos, falta de padronização dos sistemas, barreiras geográficas e de caráter financeiro. “Há uma heterogeneidade muito grande de marcos regulatórios e estruturas de mercado. Além disso, há uma certa tensão entre integração e soberania. Mas nada impede que exemplos como o do Sistema de Integração Elétrica para América Central (Siepac) tenham tido sucesso, beneficiando, hoje, 37 milhões de pessoas”, diz Liliana Díaz, do Cebri.
Ainda que a incerteza jurídica e o medo de que as convências nacionais se sobreponham aos interesses regionais sejam grandes empecilhos à ampliação da integração energética, o exemplo alemão de compra de gás da então União Soviética em plena Guerra Fria mostra que os contratos são respeitados mesmo em situações bastante adversas, observa a Sybille Röhrkasten, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados de Sustentabilidade (IASS Potsdam), da Alemanha. “E hoje ainda há um desafio global que transcende as dificuldades localizadas, que é o fato de 1,3 bilhão de pessoas com problemas de acesso à eletricidade e a previsão de aumento da demanda mundial por energia de 37% até 2040”, afirma. Dodas, da Flacso, ressalta que, quando houve a necessidade de revisão do contrato de Itaipu, porque o Paraguai solicitou o direito de vender energia para terceiros e não só para o Brasil, a questão foi decidida sem rompimento de acordos, o que prova que o obstáculo da insegurança jurídica também pode ser removido.
Para Fiorella Molinelli Aristondo, economista e assessora da Sociedade Peruana de Hidrocarbonetos (SPH) em temas energéticos, a falta de mobilização da AL acaba por desperdiçar um dos maiores potenciais do mundo em geração de energia. “A AL é a segunda região mais rica em petróleo, atrás apenas do Oriente Médio, e também uma das maiores em hidroeletricidade e produção de energia por fontes renováveis”, lista. Enquanto na AL e Caribe as fontes renováveis respondem por 25% da geração de energia, no mundo esse percentual cai para 13%. “No entanto, os países têm políticas muito específicas de desenvolvimento, o que torna o processo de integração muito lento”, pontua.
Na avaliação do embaixador José Botafogo, vice-presidente do Cebri, além de buscar soluções para destravar projetos de integração energética, é preciso ampliar o universo de investidores potenciais, uma vez que, em cinco anos, a demanda será por US$ 46 bilhões em investimentos para atender à demanda crescente da América Latina. “O desafio, além de aumentar a oferta, é reduzir desperdícios e elevar a eficiência energética nos países latino-americanos”, resume. (SK)