Enquanto políticos se engalfinham na tentativa de dar um rumo ao país, Sheila Sales, de 42 anos, viúva e mãe de quatro filhos, luta para não deixar faltar itens de primeira necessidade na sua casa. Demitida do emprego de cobradora de ônibus em setembro, ela se tornou vendedora de água mineral no trânsito de Belo Horizonte. “A vida ficou cara demais. Tirei a TV, internet, não saio mais para passear e na minha mesa só o básico do básico”, conta. Ela faz parte de uma classe social para qual a inflação está ainda mais pesada: a população de baixa renda, que ganha até 2,5 salários mínimos. De acordo com índice da Fundação Getúlio Vargas (FGV), divulgado na semana passada, a alta nos preços para essa parte dos brasileiros alcançou 11,22% nos últimos 12 meses –a maior desde 2004.
“São números que podem promover o aumento da desigualdade entre classes no Brasil. Essas famílias estão menos protegidas contra a alta de preços. Você dá com uma mão, a inflação tira com a outra”, explica o economista e pesquisador da FGV André Braz. O Índice de Preços ao Consumidor – Classe 1 (IPC -C1), calculado pela FGV, registra os preços para esse grupo da população, e mostrou que, em novembro, houve variação de 1,06%, acima do 0,70% registrado no mês anterior. Na semana passada, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que faz o cálculo oficial da inflação, mostrou que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) chegou a 10,48%, em 12 meses. “Quando há um aumento na alimentação e na habitação, a classe mais humilde sofre mais”, diz Braz.
O orçamento de Sheila, que sofreu com o desemprego, está 99% comprometido com as despesas básicas. “Conta de água e de luz, e alimentação. É com isso que gasto e, mesmo assim, as contas não fecham. Tive que fazer dívidas”, reclama. Segundo Braz, a situação hídrica do país e a alta do dólar trouxeram efeitos na alimentação. “Alimentos como carne bovina, o açúcar, a soja e outros itens de primeira necessidade comprometeram o custo de vida da família mais pobre, para qual o grupo alimentício corresponde a 30% no orçamento deles”, afirma. O economista põe na balança o peso do dragão ao longo do ano. “No início de 2015, houve aumento da energia e também da tarifa de ônibus em algumas cidades. O transporte público é uma despesa que consome 7% das rendas das famílias de classe mais baixa”, diz. Ele lembra que em março houve uma nova alta nas tarifas energéticas, depois nos preços dos medicamentos e de alimentos. “No segundo semestre veio uma nova desvalorização do real frente ao dólar”, afirma.
Sheila diz que, com o aperto e o desemprego em setembro, sua vida mudou. “Antes ia ao salão de beleza fazer minhas unhas, comia pizza, ia ao zoológico com os meus filhos. Hoje, tive que cortar tudo isso. Agora, comemos arroz e feijão. Antes comprava 5 quilos de arroz por R$ 5, agora está R$ 15”, reclama. Os alimentos foram os protagonistas para o peso no bolso da classe baixa e tiveram um avanço de 2,32% em novembro (veja quadro). “Alimentação, transporte, conta de energia. Toda política assistencialista acaba se comprometendo nesse contexto”, avalia.
Perda real Para o economista Márcio Lana, conselheiro do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais (Corecon-MG), o cenário da inflação é ruim para todas as classes sociais. “À medida que ela aumenta, tira o poder aquisitivo do cidadão e representa uma perda do conforto”, diz. Ele enfatiza que todas as classes pagam o mesmo tipo de imposto. “Por isso, para os menos favorecidos, o impacto dos aumentos é mais perverso. É a parte da população que é a primeira a sentir o custo de vida. Quem ganhava R$ 1mil há 12 meses passou a ganhar 10% a menos agora, pois as correções salariais não acompanham a inflação, já que muitas empresas, hoje, não têm como dar o reajuste de mais de 10% ao funcionário.” Lana destaca que a classe mais baixa é também a primeira a ver o desemprego batendo à porta.
“As minhas clientes sumiram, enquanto as minhas contas só aumentam”, lamenta a manicure Vanderléia Pereira, que pesquisava preços no açougue em Venda Nova e desistiu de levar carne ou peixe para casa por causa do preço. “Sem condições de comprar”, justificou. De acordo com ela, na sua casa, onde vivem seis pessoas, todo fim do mês falta dinheiro. “As famílias de baixa renda têm uma proteção menor. Para diminuir uma inflação, há o aumento nos juros. A pessoa que tem dinheiro que sobra no fim do mês consegue investir. Mas quem não tem precisa de crédito e vai ficando mais pobre ainda”, explica Braz. Ele destaca, por exemplo, que as pessoas mais humildes enfrentam aumento de 20% na carne, entre outros itens.
Presos na armadilha da crise econômica
Como a mordida do dragão da inflação é ainda mais dolorosa para as classes mais baixas, economistas não enxergam muitas alternativas para reverter o quadro, diante do aumento do desemprego e das incertezas políticas. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a desocupação no Brasil aumentou e os salários dos trabalhadores empregados sofreram redução. De setembro para outubro, a taxa de desemprego passou de 7,6% para 7,9% – o índice mais elevado para outubro desde 2007, quando a desocupação chegou a 8,7%. Já são 1,9 milhão de desempregados. “Nós, brasileiros, estamos em uma armadilha e é difícil ver a saída”, comenta o coordenador do curso de administração da Faculdade Ibmec, Eduardo Coutinho.
Segundo ele, a inflação sempre impacta em quem gasta tudo o que ganha. “Assim, toda a renda de uma pessoa de classe mais baixa é comprometida pela alta nos preços. É diferente da pessoa que tem uma renda maior e consegue reservar um dinheiro para aplicação no fim do mês”, comenta. Ele diz que, na classe baixa, as pessoas têm pouca oportunidade de se precaver e de se proteger, restando a elas tomar decisões no dia a dia, como substituição de produtos e busca por ofertas. “Não vejo muitas alternativas. A pessoa arranja um bico ou corta o que gasta”, diz.
Com medo de passar necessidade, Wanderlúcio Rita virou vigilante e entregador de pizza. Trabalhando das 8h às 18h como porteiro e depois das 18h à 0h como motoqueiro de uma pizzaria, ele diz que para dar conta da alta nos preços precisa trabalhar muito. “Além disso, estou trocando os produtos. Percebi que as coisas de marca encareciam em 5% minhas contas. A minha filha Isabela, de 9 anos, por exemplo, gosta de um tipo de iogurte que custa R$ 3,99 a bandeja. Passamos a comprar um outro que custa R$ 1, 99”, conta. Mesmo trabalhando quase 24 horas por dia, ele diz que vê seus amigos pedreiros desempregados e sabe que o seu esforço vale a pena. (LE)