Num balé de linhas e agulhas, a vida passa em sucessão de cenas pelas cabeças de jovens a mulheres maduras, que vão traçando saídas encontradas na arte do bordado e da renda para assumir o próprio controle sobre os desejos, a profissão e a manutenção da casa e dos filhos. O ofício tão antigo quanto os tempos coloniais – trazido ao país pelos portugueses e espanhois – se fortalece, em lugar de sucumbir aos tempos em que um simples toque no celular resolve com impressionante praticidade do almoço ao jantar. Num cenário de crise da economia, então, se diversifica e atrai mais mãos quase mágicas.
Das técnicas do crivo ao richelieu, os grupos de bordadeiras vêm crescendo em várias regiões de Minas Gerais, onde a arte virou tradição, ou não perdeu o laço cultural, a exemplo de Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte; Turmalina, Berilo e Veredinha, no Vale do Jequitinhonha; Tiradentes, na porção central do estado, e Ipanema, no leito do Rio Doce.
Num país em que se dá pouca importância ao que dizem as estatísticas, os poucos dados existentes sobre o artesanato do bordado mostram que a atividade desponta na geração de emprego e renda em 4.243 municípios do Brasil, 76% do total, com base na pesquisa mais recente sobre o negócio da cultura nos municípios feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente a 2014. É como um traço da cultura nacional, desenvolvido em todos os estados, do Nordeste ao Sul do país.
Sergipe lidera a geografia do bordado, uma vez que a atividade é exercida em 96% de seus 75 municípios. Na vice-liderança, ainda de acordo com o levantamento de dados do IBGE, empatam Minas Gerais e Goiás. Há bordadeiras trabalhando em 714 municípios mineiros, universo que representa 83,7% das cidades do estado. Quando consideradas as 44 cidades onde o artesanato da renda é desenvolvido, a média mineira sobe a 88,9% dos 853 municípios.
Trata-se, no Brasil e em Minas, de uma larga vantagem do bordado frente aos trabalhos feitos em madeira, material reciclado, barro e couro, entre outros. Na pesquisa anterior, de 2012, a atividade estava presente em 81,5% das cidades mineiras. Ponto paris, matizes, ponto atrás, richelieu, bainha aberta, pontos livres, as agulhas de Nayla Magalhães contam histórias bordadas no linho, no algodão, em toalhas e colchas, em jogos americanos, em saias e blusas, em camisas delicadas.
DIVERSIDADE
O bordado de quem praticamente nasceu com a agulha nas mãos mostra toda a sua diversidade. Em tempos de vida rápida e corrida, os grupos de bordados de Sabará, na Grande BH, oferecem ao cliente a tradição de um trabalho feito sem pressa, com paciência e calma, em pequena escala. Nayla tem muita habilidade com as agulhas, mas ela também tem talentos com a renda. A artesã de 65 anos é uma das responsáveis por manter vivo no município histórico a renda turca de bicos, registrada como bem de natureza imaterial, uma releitura da tradicional renda europeia. O trabalho que preserva a cultura do estado também gera emprego e renda. “Para nós, o ano não foi ruim. Participei de feiras com boas vendas, tive muitas encomendas para o Natal e estou com a agenda cheia até junho do ano que vem”, comemora a bordadeira.
Artesanato ganha mercados e valor
Contam-se histórias por meio do bordado, que, com seus traços culturais e regionais, abre mercados de consumo para peças mais valorizadas, a despeito da crise econômica. Sabrina Campos, analista técnica do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em Minas Gerais, observa que a pesquisa de matérias-primas, além de linhas e de tecidos, tem contribuído para a criação de produtos diferenciados e a expansão das vendas das peças. Há também uma grande versatilidade em usos e segmentos explorados pelas bordadeiras e rendeiras.
Elas produzem e comercializam de itens decorativos a utilitários. “É um artesanato que começa na arte manual, e conjugado com outras matérias-primas leva à criação de produtos de maior valor agregado. O bordado ganha espaço também por carregar uma identidade cultural forte”, afirma Sabrina Campos. Faltam estatísticas sobre a receita movimentada pela atividade. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que toda a receita gerada pelo artesanato, em sua grande quantidade de itens, no Brasil, alcança R$ 50 bilhões por ano, considerando-se o trabalho de 8,5 milhões de pessoas.
Sabrina destaca que o Sebrae tem observado aumento das vendas dos grupos de bordadeiras nos últimos dois anos. Na forma de ofício, o bordado e a renda ganharam, ainda, versões desenvolvidas em diferentes regiões de Minas e do país. No Nordeste, por exemplo, artesãos se especializaram na renda irlandesa e na Paraíba cresceu o trabalho da renda renascença.
Em Ipanema, a 380 quilômetros de Belo Horizonte, Rutilene Nogueira, de 39 anos, trabalha em uma máquina antiga movida a pedal. Ela trocou o emprego em uma usina de reciclagem de lixo pela renda produzida na técnica do richelieu, inspirada na moda ditada pelo cardeal Richelieu, que viveu na corte de Luiz XIII. A bordadeira aperfeiçoou a técnica em cursos de capacitação e hoje não reclama das encomendas. Ela vende toalhas de banho a R$ 110, jogos americanos por R$ 35 e toalha de mesa a partir de R$ 500. Em Ipanema, Rutilene integra o ateliê de bordados Pedalinho.
BOAS VENDAS
Também em Sabará, na Grande Belo Horizonte, Hercília Herculano participa do grupo Bordares, iniciativa que há oito meses reuniu um grupo de 28 mulheres que praticam pontos como cheio, o ponto atrás e a bainha aberta. “Fazemos todos os tipos de bordado”, conta Hercília. Ela concorda que o ano não foi ruim para as bordadeiras. “Vendemos praticamente toda a produção que levamos a uma feira internacional de artesanato.”
Em Sabará, os grupos de bordados vêm crescendo. Nayla Magalhães é uma das fundadoras da Associação dos Artesãos da Praça de Santa Rita, formada por mulheres que se dedicam ao antigo ofício. Ela também participa do grupo Requifife. O grupo de bordados e rendas tem em sua composição habilidosas artesãs com mais de 80 e 90 anos e entre as criações estão bordados que homenageiam personagens da histórica Sabará. Ela conta que o bordado é também uma fonte para complementar a renda doméstica.