“Minas não tem mar, mas tem bar.” A frase, comum para definir a vocação boêmia do estado, ficou ultrapassada. Com 41 cervejarias artesanais instaladas no estado e pelo menos mais 30 marcas sem fábrica própria, Minas tem muito mais do que bares e se destaca na fabricação de cerveja a ponto de já ser considerada a Bélgica brasileira. A produção da bebida à base de malte de cevada e lúpulo alcança o 1,3 milhão de litros ao mês e, contrariando a crise, prevê crescimento de 14% este ano. Trata-se de número 28 vezes maior em relação ao aumento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro estimado pelo Banco Central (BC), de 0,5%. No centro desse mercado, a Região Metropolitana de Belo Horizonte se consolida como o cinturão da cevada, com destaque para Nova Lima, polo de fabricação das cervejas.
Aqui, não apenas se bebe como se faz a bebida fermentada da melhor qualidade. No início de março, mineiros voltaram do Concurso Brasileiro de Cervejas, em Blumenau (SC), o principal do país, cheio de premiações, incluindo a medalha mais importante do evento. A cervejaria Backer, a mais antiga do estado, situada no Bairro Olhos D’Água, na Região do Barreiro, concorreu com outros 900 rótulos e ganhou ouro na categoria pilsen, a mais disputada.
De acordo com o Sindicato das Indústrias de Cerveja e Bebidas em Geral do Estado de Minas Gerais (SindBebidas), há no estado 41 cervejarias artesanais, sendo 15 no município vizinho à capital. A legislação de Nova Lima dá incentivos fiscais a esse tipo de negócio, o que explica a formação do polo da cevada. Além das 41 cervejarias em Minas, a produção da bebida se estende também a marcas chamadas de ciganas, que não contam com espaço próprio e cuja fabricação ocorre em unidades produtivas terceirizadas.
“Nos últimos anos, a produção de cerveja artesanal cresceu em média 20% ao ano”, afirma o superientendente do Sindbebidas, Cristiano Lamego. E ainda há muito espaço para crescer, segundo especialistas. “A produção artesanal não concentra nem 1% do mercado brasileiro. Nos Estados Unidos, ela chega a 25%”, comenta o presidente da Associação dos Cervejeiros Artesanais de Minas Gerais (Acerva Mineira), Kelvin Azevedo de Figueiredo, mestre cervejeiro da premiada Loba, de Santana dos Montes, na Região Central de Minas.
A estimativa da Acerva é que atualmente se fabriquem em Minas 50 tipos diferentes de cerveja de incontáveis rótulos. Eles se inspiram nas técnicas das escolas inglesa, belga, alemã e norte-americana. A origem da produção da cerveja artesanal está na cozinha das casas e faz parte de um movimento disseminado em todo o Brasil na última década. “Minas tem a particularidade que grande parte desses cervejeiros caseiros tem tendência a se profissionalizar”, conta Kelvin.
Independentemente do porte da cervejaria, elas se unem a partir do conceito da produção de uma bebida fermentada com alta qualidade. “Não tem como se comparar com uma cerveja de massa. A ideia é que se beba pouco e beba melhor. Não é a quantidade, mas a qualidade. Estamos falando de cervejas de receitas milenares, com o dobro da idade do Brasil”, diz Kelvin. Ele prevê crescimento ainda maior do número de fábricas artesanais, com a inclusão, aprovada em outubro, das microcervejarias no SuperSimples, tributação diferenciada para pequenos negócios.
Em volume de produção, o estado se encontra atrás somente de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo. Em inovação, entretanto, Minas é destaque no ramo. Segundo Fabiana Arreguy, uma das sócias da Academia Sommelier de Cerveja, o título de Bélgica brasileira se deve à criatividade dos mestres cervejeiros de Minas, característica semelhante aos produtores do país europeu. “A cerveja belga tem uma liberdade criativa para se adicionar ingredientes. Em outras escolas, como a alemã, isso não ocorre”, ressalta a sommmelière, que afirma que essa característica faz com que Minas Gerais esteja na vanguarda da produção cervejeira.
Veja mapa interativo com as principais cervejarias artesanais de Minas
LOTERIA
“Foi a mesma coisa que ganhar na loteria. É o estilo que todas as fábricas produzem e é um tipo de cerveja muito delicado”, conta a diretora de marketing da Backer, Paula Lebbos, ao comentar o prêmio de melhor pilsen do Brasil. Fundada há 19 anos, a Backer foi uma das cervejarias que desbravaram o mercado em Minas. O ponto de partida foi com a cerveja Três Lobos, a primeira artesanal mineira.
Atualmente, a Backer é a maior cervejaria do estado, com produção média de 240 mil litros/mês, num total de 20 rótulos. “Em 2016, crescemos cerca de 12,5%”, afirma Paula, sem revelar cifras. A produção chegou ao limite da capacidade da fábrica. Com história no ramo, Paula acredita que a força da bebida à base de malte e lúpulo em Minas tem relação com a cultura e culinária mineiras. “O mineiro é curioso, busca a melhor comida, a melhor bebida e gosta de receber bem”, afirma.
Receitas ciganas sem limitações
Dentro do mercado cervejeiro, multiplicam-se as chamadas cervejarias ciganas, que contam com receitas e fórmulas da bebida, mas não têm fábrica própria. A produção é feita nas instalações de outras cervejarias. Somente a Verace, inaugurada em agosto, no Jardim Canadá, em Nova Lima, abriga, além de seus oito rótulos próprios, a produção de sete marcas ciganas, entre elas Dunk Bier, Dos Caras, Protótipo e Experimento Beer. As outras, sendo uma de fora do estado, não podem ter o nome revelado por contrato de sigilo. A fábrica opera com 40 mil litros por mês e pode chegar ao triplo desse volume.
“Temos uma receita garantida e ainda fazemos intercâmbio com outros mestres cervejeiros”, afirma um dos sócios da Verace, o mestre cervejeiro Túlio Pinto Silva. O contato com as artesanais remete à época em que morou nos EUA, onde é comum a fabricação de cerveja caseira. Já de volta a BH, o plano de negócio feito por um dos sócios apontou o potencial desse mercado. “Fizemos um investimento de R$ 8 milhões e, pelas projeções, o negócio se paga em cinco anos. Até agora, o desempenho está na curva que imaginávamos”, ressalta.
Em franco crescimento, os lançamentos não param. Na quarta-feira, a cervejaria Vinil, produzida na fábrica Inconfidentes, em Nova Lima, apresenta seu novo cardápio da bebida. “Vamos produzir seis rótulos, começando com produção de 15 mil litros por mês e chegando a 50 mil”, afirma um dos sócios, Daniel Pinheiro.
DESTAQUE MUNDIAL
Vencedora do título de melhor cerveja do estilo belgian strong ale do planeta na World Beer Cup, a Copa do Mundo da Cerveja, em 2016, a Wäls assiste a esse crescimento exponencial. Um ano antes, a Ambev enxergou o potencial da fábrica, fundada pelos jovens irmãos José Felipe e Tiago Pedras Carneiro, e comprou a cervejaria. A unidade, instalada no Bairro São Francisco, Região da Pampulha, produz cerca de 150 mil litros ao mês. São 19 rótulos destinados aos mercados de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo.
“Fizemos uma expansão na fábrica no meio do ano passado e triplicamos a produção”, afirma a coordenadora de marketing da empresa, Ludmila Brumer. A Wäls também está investindo num ateliê cervejeiro que será inaugurado em maio, no Bairro Olhos D’Água. O espaço abrigará restaurante, ponto de venda, espaço para cursos, além de área de maturação das cervejas especiais. Interessados também podem conhecer a fábrica da Wäls em visitas guiadas aos sábados. (FA)
Palavra de especialista
Fabiana Arreguy
sommelière de cerveja
Do grão ao copo
“Cerveja é a bebida fermentada de grãos contendo, necessariamente, lúpulo, malte de cevada, água e levedura. Não há uma definição clara sobre o que é cerveja artesanal. Por regra, nas cervejarias artesanais o cervejeiro participa de todo o processo produtivo, desde a escolha dos insumos até a distribuição. O olho do dono enxerga todas as etapas do processo”