Raro são os profissionais que pensam no terceiro setor como opção de carreira, com empregabilidade e remuneração. A maioria o imagina apenas como trabalho voluntário. Talvez porque sua origem, no século 16, com a fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos em 1543, a primeira referência histórica de uma entidade do setor no Brasil, sustente esse caráter. As pessoas só pensam em organizações sem fins lucrativos, filantropia, mão de obra voluntária e prestação de serviço público. Tudo isso é verdade, mas o setor vai muito além. Mas não pense que, por ser terceiro setor, as exigências são menores do que no segmento privado. Além das competências e habilidades, ele requer muito mais.
Com o objetivo de criar um fórum de discussão sobre as diversas esferas e temáticas do terceiro setor, a Prime Talent, empresa de busca e seleção de profissionais de média e alta gestão em toda a América Latina, conduziu entre julho de 2016 e março deste ano entrevistas com 50 profissionais, entre gerentes, diretores e presidentes de distintos setores da economia brasileira, que atuam tanto no setor privado quanto no terceiro setor como voluntários ou como profissionais remunerados.
Foram escolhidas duas organizações sociais como estudo de caso: a ChildFund Brasil, organização social que adota boas práticas de governança e atua no Brasil desde 1966, e a Ramacrisna, organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, sem vínculos religiosos ou partidários, fundada em 1959 pelo jornalista paraibano Arlindo Corrêa da Silva, que há 57 anos desenvolve projetos culturais, educacionais, profissionalizantes, aprendizagem, geração de trabalho e renda, esporte e lazer, voltados para a comunidade em situação de vulnerabilidade social de Betim e 10 cidades do entorno.
David Braga, CEO da Prime Talent, explica que o terceiro setor é a próxima tendência de mercado (aliás, já é) pela Agenda 2030, documento que propõe 17 objetivos do desenvolvimento sustentável e 169 metas correspondentes, fruto do consenso obtido pelos delegados dos estados-membros da ONU. “As organizações sociais se profissionalizam para sobreviver. Caso contrário, não conseguirão patrocínio se tiverem uma imagem manchada ou um executivo com seu nome atrelado a uma organização sem credibilidade.” Ele enfatiza que o terceiro setor tem duas vertentes: a primeira, é o que fazer em prol de uma sociedade melhor; e, a segunda, é que a empresa que não estiver envolvida com a responsabilidade social está fadada ao fracasso porque ela “gera engajamento, posicionamento e fortalecimento da marca. É diferencial no mercado tanto para o investidor quanto para a mão de obra”. David lembra que a geração milênio ou Y sabe dessa importância. “Ela se envolve, está atenta à sustentabilidade e a maior preocupação é, principalmente, com o meio ambiente.”
Para quem não imaginava, David Braga reforça que dentro do terceiro setor há camadas de profissionais contratados e remunerados, inclusive executivos. Além do voluntariado. “A empregabilidade começou com a captação de quem doasse tempo, dinheiro, enfim, doasse ao próximo. Agora, há organizações sociais profissionalizadas e mais estratégicas, com profissionais oriundos do setor privado. E isso vai se tornar cada vez mais frequente. Há esse movimento. E o terceiro setor atua em todas as áreas que o Estado não consegue atender: erradicação da pobreza, boa saúde e bem-estar, educação de qualidade, indústria e inovação”, afirma.
COMPETÊNCIAS
Conforme David Braga, as exigências do profissional capacitado para o terceiro setor são as mesmas do privado. “As competências são quase as mesmas, já que no terceiro setor exige-se mais compaixão, gostar de pessoas, visão humanitária, maturidade emocional para saber lidar com as mazelas, engajamento para angariar. Ter o brilho no olhar para liderar com alta capacidade de mobilização e ter conhecimento em marketing, RH, digital e finanças, ética, ser mediador de conflitos, propor soluções. As competências se aproximam, mas a força está na essência humana.”
David Braga explica que o grupo que faz de fato a gestão acontecer são as pessoas contratadas, mais do que o voluntariado. “O setor precisa abrir o olho porque talento precisa ser pago. Por isso, essa proporcionalidade tende a inverter, já que o terceiro setor vira eficiência conseguida com o know-how de profissionais com dedicação full time. Inclusive, já há organizações com bônus e performance. E para o profissional é interessante: ele vai integrar um setor que oferta mais qualidade de vida porque é menos estressante e menos agressivo, nem por isso menos importante, e é competitivo.” No entanto, ele reconhece que ainda não existe um fórum de discussão para ajudar o próximo. “Há um estigma sobre o terceiro setor de que é amador, desorganizado, sem processo, desprofissionalizado, sem sistema, sem tecnologia, mas é um grande engano. É um setor que tende a se consolidar, só cresce e traz resultado para o profissional que gera uma sociedade diferenciada. Na verdade, quando mais profissionalizada, mais assertiva será e mais pessoas serão atendidas.”
Não seja míope
“Há uma miopia do Brasil em tratar do terceiro setor, que já movimenta R$ 25 bilhões por ano, é um segmento robusto, mas não é tratado com carinho.” A declaração é de Gerson Pacheco, diretor de país da ChildFund Brasil, organização social que adota boas práticas de governança e atua nacionalmente desde 1966, por meio de uma sólida experiência na elaboração e no monitoramento de programas e projetos sociais mobilizando pessoas para contribuir na transformação de vidas. Dessa maneira, crianças, adolescentes, jovens, famílias e comunidades em situação de risco social são apoiadas para que possam exercer, com plenitude, o direito à cidadania. A organização beneficia mais de 123 mil pessoas (sendo mais 33 mil crianças, adolescentes e jovens atendidos diretamente). Para uma operação gigantesca e complexa como essa, o ChildFund Brasil conta com a parceria de 44 organizações sociais responsáveis, que atuam em mais de 53 municípios, com grandes demandas a serem superadas.
Soma-se à visão equivocada, o fato de a “academia não formar profissionais capacitados e com habilidades para o setor. A formação está voltada para a assistência social, sem foco em tecnologia e gestão de finanças. A preocupação ainda é a formação assistencial para cumprir políticas públicas”, enfatiza Gerson Pacheco. Ele alerta que “o mundo navega no terceiro setor porque já não há mais espaço, o vértice mudou, o que interessa hoje é a empresa cidadã, compromissada com a sociedade. Não tem como uma empresa deixar de ouvir os stakeholders na sociedade onde está inserida”.
ATOR PRINCIPAL
Na verdade, todos precisam acordar porque “há uma série de movimentos no terceiro setor e não tem volta. Principalmente, na área socioambiental, que é o futuro. A bola da vez”, avisa Gerson Pacheco. Ele destaca que, no momento, o mundo traz o terceiro setor para o palco, não como coadjuvante, mas como ator principal. E para que ocorra o crescimento sustentável, é preciso gente.
Gerson Pacheco fala que remuneração no terceiro setor mora em três caminhos. “Aquela dos mais jovens, que abarca a remuneração com desenvolvimento. Outra ponta é a dos executivos acima de 55 anos, já formados e com a vida resolvida, que não querem assistir sessão da tarde nem se tornar executivo doméstico. É o que não precisa de remuneração de produção, mas adicional e quer deixar seu legado para a sociedade. Agora, tem os profissionais na fase de produção, que vão receber um salário, mas não de ponta, médio. Mas com ganho para o currículo, é diferencial ter passado pelo terceiro setor ao longo da carreira. É um setor que todo mundo está de olho. Sem falar que o medidor mais importante é chegar em casa e saber que está ajudando a construir um mundo melhor. Não tem preço. Esse é um dos maiores indicadores de vida.”
É hora do profissionalismo
Antes de mais nada, fazer parte do terceiro setor é ser otimista e acreditar na transformação. Valseni Braga, CEO da Rede Batista de Educação, afirma que “ele está em franco desenvolvimento com a evolução da ética na humanidade e com o Brasil tomando consciência, ainda mais por ter sido sempre ajudado por outros países, principalmente na década de 1960, e como é nos dias de hoje. Ocorre que chegou o momento de o Brasil tomar conta dos excluídos da justiça social. Mesmo como defensor do capitalismo, sei que seu ponto fraco é o processo de distribuição. Cria riquezas rápido, mas não compartilha. Por isso, é preciso cuidar de quem fica para trás e contribuir com o primeiro e o segundo setor”.Valseni Braga diz que o Brasil tem um grau de sensibilização muito bom e que “chegou o momento de sair do estágio de pessoas de boa vontade para o profissionalismo. Temos recursos disponíveis para aplicar, inclusive do mundo corporativo, porque hoje a palavra de ordem é liderança sustentável para sobreviver. A empresa que cuida do terceiro setor ajuda o mundo a ser melhor. E, do outro lado, o terceiro setor evolui, já que tem de lidar com o marco legal, o governo até editou legislações que ajudam, e o crescente grau de profissionalismo”. O que é fundamental, porque o terceiro setor precisa pensar em resultado, em produtividade, boa performance, governança e compliance.
Mas os desafios são muitos. Valseni Braga destaca a formação. “O Colégio Batista Mineiro, que em 2018 completa 100 anos, tem no DNA uma instituição comprometida com valores, ética e caráter do aluno para a formação do ser humano, ou seja, aborda o todo, o corpo, o cognitivo, o lado socioemocional e o transcendental espiritual sem doutrina. Entendemos que há problemas na sociedade brasileira de descontinuidade nisso. Somos um conjuntos de nove escolas e uma faculdade com foco, não no lucro com a educação (nossa mantenedora são as igrejas batistas), mas em ajudar o mundo a ser melhor para se viver. Assim, temos uma pós-graduação em direito, contabilidade e festão do terceiro setor que visa fortalecer o setor com disciplinas interessantes para que ele se organize cada vez mais, tenha governança implantada para se credenciar a receber os recursos disponíveis. O setor precisa de profissionais com competências em todas as áreas e a academia precisa gerar know-how”, afirma.
PÓS-GRADUAÇÃO
Para Valseni Braga, aquele que quer ter futuro, tem de pensar no terceiro setor. “Ele vai expandir muito no Brasil e há muito o que fazer por causa da desigualdade. Na área educacional, o desafio é enorme. As pessoas estão na escola, mas ela é ruim, logo continuam excluídas. Há de surgir mais empreendedores sociais para cuidar da educação. Profissionais por tempo integral, remunerados e também voluntários.”
Vale destacar, segundo Valseni Braga, que a instituição, em passo importante para o futuro, “revisa o currículo porque pensamos em inserir disciplinas que preparem os alunos tanto para conseguir emprego no terceiro setor como para serem voluntários. É o nosso compromisso de que os alunos façam uma intervenção positiva na sociedade, não só pela riqueza e fama (ainda que isso não seja problema)”.
Palavra de especialista
Vanderlei Soela - pedagogo, psicólogo e professor-associado da Fundação Dom Cabral
Dose de paixão
“O terceiro setor no Brasil está configurado há anos e, com o passar do tempo, a profissionalização tem aberto a possibilidade do espaço ser passível e viável para trabalhar. Muitas organizações se acostumaram com o trabalho de caridade apenas, que será sempre bem-vindo, mas há instituições de diversas naturezas, com muitas possibilidades e arranjos com oferta remunerada. A questão é que o profissional no mercado não se via ou se interessava pelo setor. No entanto, há demanda tanto pela sociedade quanto parceiros que precisam de especialistas em finanças, marketing, processos, projetos, pessoas entre outras. O terceiro setor é um lugar para remunerar. O bacana é que, se o setor captar bons profissionais e despertar uma perspectiva de cunho social e de interesse por uma causa, o desejo de lutar e se dedicar a um ideal, o resultado não será só financeiro. As necessidades do terceiro setor são semelhantes às do primeiro e segundo, muda a natureza e a finalidade que vislumbram a transformação para um mundo melhor. E as organizações que fizerem uma gestão benfeita, transparente, mostrando o que faz, seguramente vão se manter por muito tempo. Conheço instituições com mais de 60 anos fazendo projetos, parcerias no Brasil e exterior, sendo procuradas pelo poder público e privado. É importante destacar que uma coisa não exclui a outra. O trabalho remunerado não elimina o voluntariado. E quem adota o setor precisa ter uma dose de paixão (ou pode desenvolvê-la) pelo outro, pelo planeta. Não é uma pessoa fria e calculista. Ao buscar o trabalho tem de ser realista, buscar informações sobre a instituição para se configurar na perspectiva e se comprometer com o que tem conexão.”