Brasília – R$ 70,5 milhões. O valor é mais um dos superfaturamentos identificados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) na construção da Ferrovia Norte-Sul. No processo, as irregularidades estão na execução de 52 quilômetros no trecho entre Ouro Verde de Goiás e o Pátio de Jaraguá (GO), em contrato firmado entre a Valec Engenharia, Construções e Ferrovias e a Constran, em 2009. Em decisão na última quarta-feira, os ministros do TCU bloquearam os bens do ex-presidente da Valec José Francisco das Neves, mais conhecido como Juquinha das Neves, para garantir o ressarcimento da quantia aos cofres públicos. Ele e o filho Jader das Neves estão na cadeia. Levantamento do Estado de Minas/Correio Braziliense mostra que, em 29 processos sobre a Norte-Sul no TCU, o histórico de superfaturamento, sobrepreço e irregularidades se repete em praticamente todos. E, na opinião de especialistas, a corrupção é um dos principais entraves para o desenvolvimento do setor no país.
O festival de irregularidades na Norte-Sul indica porque o país não consegue encontrar o caminho dos trilhos para o transporte de cargas e passageiros. Enquanto, no mundo, a média em transporte ferroviário é de 45%, no Brasil é de apenas 25%, segundo dados da Associação Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Em uma malha férrea de cerca de 28.540 quilômetros de trilhos implementados, apenas 12 mil quilômetros transportam carga atualmente. Por meio de nota, a Valec destacou que as irregularidades se referem a períodos em que a empresa era gerida por outra diretoria e reafirmou o “compromisso com a probidade, a ética e a transparência no exercício da atividade pública”.
O ministro do TCU Bruno Dantas esclarece que, por ser uma obra extensa e o parcelamento estar dividido em uma grande quantidade de lotes, o tribunal, a fim de racionalizar as apurações, optou por constituir um processo para cada contrato, o que contribui para o número elevado. “Mas, de fato, considerando que foram identificadas irregularidades em todas as etapas do empreendimento e a recorrência dessas irregularidades, é correto afirmar que a Ferrovia Norte-Sul está incluída na lista de casos mais emblemáticos de malversação em obras públicas no Brasil.”
APOSTA NA LOGÍSTICA
A Norte-Sul é a aposta do governo para revitalizar a malha férrea e aumentar a capacidade logística. A proposta atual do Sistema Nacional de Viação (SNV), segundo o Ministério dos Transportes, prevê a ferrovia como o principal eixo integrador, onde as demais se conectariam e estabeleceriam uma rede estruturada e ampla. Está aberta audiência pública na ANTT, até 11 de agosto, para a formulação do edital do contrato de subconcessão do trecho entre Porto Nacional (TO) e Estrela d’Oeste (SP), que irá a leilão em fevereiro de 2018. O investimento estimado é de R$ 3,087 bilhões e o valor esperado de arrecadação é de R$ 1,5 bilhão. Além disso, com a sanção da Lei 13.448 de 2017, originária da MP das Concessões, as concessionárias esperam um aporte de quase R$ 30 bilhões, que dá a oportunidade para mais do que dobrar a capacidade de transporte de cargas.
O ministro Bruno Dantas espera que, assim que o edital estiver pronto, o governo o submeta ao TCU para que os auditores possam se debruçar sobre ele e o caminho comece de maneira correta. Na opinião do ministro, a corrupção contribuiu para a atual degradação do sistema ferroviário. “Essa situação de perplexidade contribuiu especialmente no que diz respeito à nossa capacidade de expandir a malha, pois importantes projetos logísticos deixaram de ser concluídos no horizonte de tempo previsto. Além dos problemas verificados na Norte-Sul, houve também o caso da Oeste-Leste, que sofreu grandes atrasos por questões de projeto e se encontra no limbo”, comenta.
OBRAS INTERMINÁVEIS
O professor de engenharia de Transportes da Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Hostilio Xavier Ratton Neto lembra que começou a carreira como engenheiro, na década de 1970, participando da construção da Ferrovia do Aço, que liga Belo Horizonte ao Rio de Janeiro, e até hoje ela não acabou de ser construída. Além dela, o professor lista uma série de linhas que começaram e não acabaram. “As obras começam e não terminam. Não há falta de investimento. A cada 10 anos, sempre tem um governo anunciando a construção de uma ferrovia no Brasil. Todas elas começam, mas não acabam. E, como demoram muito para operar, não trazem retorno na época certa. Boa parte do recurso, se consome pela falta de oportunidade do momento.”
Hostilio Neto destaca que um dos entraves para o desenvolvimento está no histórico uso das ferrovias somente para escoamento da produção do interior para a exportação. O professor conta que, até a década de 1940, o Brasil usava as ferrovias para o transporte interno de mercadorias, hoje feito pelas rodovias. “A gente não conhece a carga que transita no interior do país. No século passado, chegamos a ter mais de 40 mil quilômetros de estradas de ferro. Isso era um país pobre. Agora, somos um país rico que não consegue fazer nem sequer um quilômetro de trilho.” A transferência do transporte interno das rodovias para as ferrovias é das soluções apontadas pelo especialista. Um vagão de soja, por exemplo, comporta em média 90 toneladas, o equivalente a três caminhões.
Mas, para pensar em iniciar uma mudança nesse sentido, o país precisa conhecer a movimentação de cargas atual nas rodovias. Questionado sobre o assunto, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) destacou que a medida faz parte do Plano Nacional de Contagem de Tráfego, feito com apoio do Comando de Operações Terrestres (Coter) do Exército. Em três fases da Pesquisa Origem e Destino, iniciada no ano passado, o órgão contou e classificou mais de 9,6 milhões de veículos em 118 postos das rodovias brasileiras.