“Antes era assim: tinha rico, classe média e pobre. Depois, a coisa mudou e o pobre passou a ser classe média, a comprar televisão, carro, ter acesso a saneamento básico. Mas estou com medo, porque parece que as coisas estão voltando a ser como antes.” Quem traça o retrato sociológico e econômico do Brasil da última década é a manicure Regina Célia Pires, de 57 anos, líder comunitária da Vila Ambrosina, às margens do Ribeirão Arrudas, na Região Oeste de Belo Horizonte. De três anos para cá, dona Regina perdeu clientes e agora vive da renda do imóvel que aluga embaixo da casa. E ela é daquelas pessoas que evitam eufemismos. “Sou pobre. Sempre fui, mas consegui construir minha casa, comprar tanquinho, lava-roupa, panela elétrica e meus filhos, um carro. Agora, já cortei internet, TV por assinatura. Não estou dando conta de pagar. As mulheres estão fazendo a unha só pra ir pra festa”, afirma.
Em 10 anos, o país assistiu à escalada social de uma parcela da população que conseguiu cruzar a linha da pobreza e alcançar a classe C. De acordo com levantamento da Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), com base em números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a classe C saltou de 39,7% da população, em 2004, para 58,4% em 2014, até se acomodar em 57,1% em 2015. Esse grupo ficou marcado pelo acesso a serviços e bens de consumo antes considerados de gente rica, como carro, eletrodomésticos e passagens aéreas.
NOVO OBSTÁCULO Resiliente à crise de 2012, a menina dos olhos da economia, no entanto, não ficou imune à recessão que começou em 2014. A renda per capita dos brasileiros caiu 11,4% entre 2014 e 2016, quando 5,4 milhões de pessoas entraram para a pobreza, de acordo com a FGV Social. “No passado, a inflação foi o grande aliado da nova classe média. Olhando para frente, a inflação não vai cair mais, então o desemprego é a bola da vez. Quem vai permitir a recuperação são o emprego e a maior produtividade”, afirma o pesquisador da FGV Social, Marcelo Neri, ex-ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
“Nos últimos 12 meses, a renda já está crescendo 3%. A classe C está voltando, mas ainda não recuperou as perdas”, afirma Neri. O desafio da recuperação é grande, diante de 12,6 milhões de desempregados do Brasil. A taxa de desemprego no país fechou em 12% no trimestre encerrado em novembro, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). Os desocupados são 543 mil (4,1%) a menos em relação ao trimestre anterior, porém, 439 mil a mais (3,6%) se comparados com o mesmo trimestre de 2016. Segundo o IBGE, o trabalho informal vem contribuindo para a tendência de desaceleração do desemprego.
O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Rafael Osorio destaca que o desemprego entre a parcela mais pobre da população é maior, o que torna a situação mais delicada. “Essas pessoas também sofrem mais com a instabilidade do mercado de trabalho, porque o salário é o que a maior parte das famílias tem para se manter. Não há outra renda. Então, se um trabalhador informal, um ‘marido de aluguel’, por exemplo, perde clientes, de repente a renda da família vai para zero. Com uma maior geração de empregos, esse quadro pode começar a se reverter”, afirma o pesquisador.
SUSTO “A classe C foi quem mais ganhou e quem mais perdeu nesses últimos 15 anos. Quanto mais baixa a classe social, maior o desemprego”, afirma o sócio da CA Ponte Estratégica, consultoria voltada para o consumidor popular, André Torretta. Pesquisa realizada pela consultoria aponta que, embora a notícia seja de que a crise está passando, a turbulência econômica ainda assusta essa parcela da população. “Oitenta e oito por cento dos entrevistados se dizem vulneráveis. O cenário está mudando, mas ninguém sai de uma crise como entrou. Isso gera um trauma”, reforça Torretta.
A parte positiva é que, segundo o levantamento, a classe C passou a ter maior educação financeira e a valorizar mais a educação. Foi colocando o pé no freio que o alfaiate João Correia, de 63, conseguiu manter as contas em equilíbrio. A crise financeira atravessada pelo país derrubou em 40% o rendimento do alfaiate. Os clientes sumiram e a inadimplência também aumentou.
“Cortamos as viagens e tenho uma filha solteira que ajuda a pagar a TV e a internet. Nossa sorte é que construímos nossa casa própria, então não temos despesa com imóvel”, afirma. Ver os três filhos formados no ensino superior – cursado com auxílio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), programa do governo federal – é mais um motivo de alívio para João, preocupado com a situação do país. “Gás e gasolina só sobem, com a Petrobras faturando alto. Tem alguma coisa errada.”
Referência
A Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (Abep) lançará em fevereiro a atualização do Critério Brasil, análise das classes sociais brasileiras que serve como referência para institutos de pesquisas. Os dados são feitos com base na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) e a última versão usa dados de 2015. “No auge da crise, vimos uma piora no perfil de distribuição socioeconômica com o crescimento das classes mais baixas. Não acredito que houve mudança substancial. O desemprego cresceu um pouco ainda, mas não melhorou para ficar otimista”, diz o coordenador do Critério Brasil da Abep, Luis Pilli.
A última pesquisa mostrou que o desaquecimento econômico impactou com maior força os domicílios que, em 2015, eram classificados como B2 e C1, com rendimentos médios de R$ 4,9 mil a R$ 2,7 mil, respectivamente. “Quase um milhão de domicílios caíram para as classes D e E”, ressalta Pilli.
Conceito variável
Não há um consenso sobre o conceito de classe C no país. O Critério Brasil, por exemplo, parâmetro usado por institutos de pesquisas, considera uma série de variáveis para definir classe social, entre elas escolaridade do chefe de família, o acesso desse grupo a bens e serviços, como água encanada, eletrodomésticos, veículos e até mesmo se o lar tem ou não empregados domésticos. A renda também é associada, mas é usada como critério secundário. A metodologia de desenvolvimento do Critério Brasil, que entrou em vigor no início de 2015, está descrita no livro Estratificação socioeconômica e consumo no Brasil, dos professores Wagner Kamakura (Rice University) e José Afonso Mazzon (FEA/USP), baseado na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A consultoria Tendências considera que a classe C está no espectro da população com renda entre R$ 2.302 e R$ 5.552, por família. O IBGE e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) não trabalham com classificação por renda e a atualização desses números por outros institutos ficou dificultada pela mudança metodológica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE.