Os moradores do Vale do Jequitinhonha, historicamente, têm uma dependência econômica da saída para o corte de cana. Mas a migração acabou interferindo no modo de vida na região, gerando um drama para os filhos criados longe dos pais. A opinião é do professor Anderson Bertholi, do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), que coordena o estudo “Os reflexos da transumância na organização socioespacial de Minas Novas – Os órfãos da cana”, sobre os impactos da migração para o trabalho nos canaviais
“Ficou evidente o drama enfrentado pelos filhos e filhas, uma vez que a ausência do pai como referência à construção dos valores familiares impôs, ao longo de décadas, um vazio que significou e significa uma espécie de morte da esperança. Paradoxalmente, essa mesma ausência tem sido a única alternativa de renda e perspectiva de uma, mesmo que pequena, melhora nas condições duras de vida no Vale”, afirma o pesquisador.
Conforme Bertholi, o estudo tem como objetivo fazer um diagnóstico completo desse movimento pelo espaço de todo o Vale do Jequitinhonha, tanto pelo viés da migração como daquele associado à renda. “Quantos e quem são os trabalhadores, da quantificação da renda e do atrelamento das famílias, portanto, dos órfãos filhos dos cortadores e dos órfãos do trabalho mecanizado a partir desta vinculação do lugar às empresas de fora”, explica. O levantamento foi iniciado em março do ano passado e ainda não tem data para terminar, por ser uma “pesquisa de fluxo contínuo”.
O professor lembra que, apesar de ajudar na sobrevivência da população castigada pela seca, a migração também deixa “cicatrizes” nas famílias. “Muitas são as cicatrizes deixadas por esse movimento, tanto numa perspectiva sociológica – da reorganização dos núcleos familiares, cujo papel a mulher se fez protagonista –, quanto geográfica no sentido de transformação desses lugares por uma materialidade precária, fruto da transferência de renda minguada”, comenta.
Também do Departamento de Geociências da Unimontes, a professora Gildete Soares Fonseca lembra que o “ato de migrar” envolve grande complexidade cultural, social, política, religiosa e, principalmente, econômica. “No caso de municípios da mesorregião Jequitinhonha e Norte de Minas, a migração temporária ou permanente faz parte da história da população. Representa emancipação social, devido aos baixos indicadores socioeconômicos. Assim, a alternativa para a sobrevivência de muitas famílias é sem dúvida a migração temporária. Conforme as safras, (as pessoas) migram para o corte de cana, para colheita de café, entre outras atividades”, salienta Gildete, que fez estudo sobre o processo migratório na região ao concluir doutorado na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
A pesquisadora ressalta que, “em relação à repercussão da migração nas famílias e na territorialidade local, podemos pontuar que é nítida a reprodução de geração a geração, ou seja, tornam-se culturais as ‘idas e vindas’”. “Os recursos financeiros são aplicados na melhoria das casas, na aquisição de veículos, na alimentação da família. Portanto, existe movimentação do dinheiro no comércio local, o que é considerado positivo por muitos governantes municipais”, analisa. Por outro lado, Gildete observa, “existe a incerteza do retorno ao sair, a dor de muitas esposas na perda de filhos, maridos, assim como a luta diária de sobrevivência dos que ficam e dos que vão, pois em geral são longas horas de trabalho e nem sempre os direitos trabalhistas são garantidos”.