Duas ações civis públicas tramitam na Justiça contra aplicativos que oferecem o serviço de entrega. O Ministério Público do Trabalho (MPT), autor dos processos, pede o reconhecimento do vínculo empregatício entre motociclistas e as empresas Loggi e IFood. Ainda não houve julgamento das ações. Outras empresas também estão sendo investigadas pelo MPT e um grupo de trabalho foi criado na instituição para estudar as novas tecnologias.
“Embora se apresentem como empresas de aplicativo, a finalidade é transportar objetos. Elas, inclusive, estabelecem toda a rotina e prazo em que isso deve ser feito. O trabalhador recebe ordens e uma série de requisitos pelo algoritmo”, afirma a vice-coordenadora nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do MPT, a procuradora Vanessa Patriota, que diz se tratar de um “subordinação cibernética”.
No atual modelo, motociclistas são considerados autônomos e tratados como parceiros. “Vivem de uma forma precária, acreditando ser autônomos, trabalham 13 horas, 14 horas... “, reforça. De acordo com a procuradora, a situação é similar ao cenário anterior à existência das leis trabalhistas. “Trabalhadores iam para a porta das fábricas esperar serviço”, compara. Ela ainda observa que o pagamento por produtividade é irregular. “É uma atividade de risco e isso aumenta o risco”, diz.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Motociclistas e Ciclistas de Minas Gerais (Sindmoto-MG), Rogério Santos Lara, denuncia o descontrole do setor com a entrada da tecnologia. “Já estava ruim e o aplicativo só aumentou a bagunça”, diz. O sindicalista afirma que pessoas sem preparo estão atuando na atividade e com veículos sem a placa vermelha.
“Entra porteiro, entra padeiro, é só baixar. Ninguém sabe mais quantos somos. O cara vira escravo do aplicativo, fica à disposição deles. Não tem nenhuma exigência”, diz Lara, que calcula mais de 30 mil motociclistas atuando na região metropolitana antes da explosão dos aplicativos.
O motociclista Victor Hugo Souza, de 37, vive, literalmente, a dor e a delícia da vida das entregas usando os softwares. No setor há 18 anos, ele conseguiu mais dinheiro depois que se cadastrou nos apps, há cerca de 2 anos. Tem vários sistemas na tela do celular e sem carteira assinada recebe, livres, de R$ 2 mil a R$ 3 mil ao mês. “Quanto mais produzo, mais ganho”, destaca.
Mas, se não produz, não tem qualquer garantia ou seguro. No ano passado, Victor Souza ficou 15 dias sem trabalhar por causa de um acidente em que fraturou o osso da canela. “Estava correndo por causa do horário da entrega. O aplicativo ainda me descontou os R$ 16,90 do açaí que não consegui entregar. Com dois filhos pra criar, não dá para parar”, diz. “No começo é uma maravilha, agora a gente sofre com a concorrência”, diz.
REGULAMENTAÇÃO A Lei Federal 12.009, de 2009, regulamenta a atividade de motoboys e as regras para o motofrete no país. Entre as exigências estão ter 21 anos, habilitação de moto por pelo menos dois anos, ter certificado de curso especializado, estar vestido com colete de segurança. A legislação aponta como infração admitir o uso de moto para transporte remunerado de mercadorias que esteja fora das normas, além de destacar que o município e o estado também têm a competência de regulamentar a atividade.
Para prestar o serviço de motofrete na capital mineira, é necessário que o condutor se cadastre na BHTrans, faça a inspeção técnica semestral da motocicleta e registre o veículo no Departamento de Trânsito de Minas Gerais (Detran-MG), na categoria aluguel, que usa a placa vermelha. Não existe, entretanto, regulamentação municipal para aplicativos de motofrete e poucos exigem uso de motocicleta com a placa especial.
Apesar do crescimento do setor e a entrada de motoristas sem a regulamentação do mercado após os aplicativos, a fiscalização, a cargo da Polícia Militar (PM) e da Guarda Municipal não reflete esse cenário. De acordo com estatísticas do Detran-MG, as multas por conduzir motocicleta efetuando transporte remunerado em desacordo com as normas passaram de 504, em 2015, para 466, em 2018, queda de 8%. A reportagem do Estado de Minas não contabilizou multas aplicadas a veículos sem licenciamento, já que não há descriminação do tipo – automóvel, moto, etc.
Em nota, o iFood informa que segue a legislação e reforça que os entregadores são “um dos principais parceiros”. De acordo com a assessoria de imprensa da empresa, são feitos investimentos em tecnologia para limitar o perímetro de atuação dos entregadores nas rotas entre o restaurante e consumidor.
“A empresa reitera que suas atividades geram oportunidade de renda para milhares de entregadores e esclarece, ainda, que seus parceiros de entrega são autônomos, ou seja, podem se cadastrar na plataforma para realizar entregas de acordo com sua conveniência, e podem operar também por meio de outras plataformas”, informa.
Em nota, a Loggi respondeu que os motofretistas autônomos cadastrados junto à empresa são microempreendedores individuais (MEI) e recolhem contribuição previdenciária (INSS) e impostos. Também ressaltam que o motorista tem a liberdade para definir quando aceitar uma entrega.
Segundo a empresa, a média de tempo que os motofretistas despendem executando serviços de entregas intermediadas pela Loggi é de 4 horas diárias, o que, de acordo com o aplicativo, “garante uma renda equivalente ao dobro do que recebe, em média, um motofretista celetista no Brasil”.
A Loggi também informa ser uma empresa certificada pelo Observatório Nacional de Segurança Viária como amiga do trânsito. “A velocidade média dos motofretistas durante as entregas intermediadas pela Loggi é de 22 km/h, ou seja, inferior à velocidade máxima permitida em vias locais”, diz a nota.
Vale tudo, de comida a remédio
O setor de alimentação comemora a chegada dos aplicativos, que contribuiu para o fortalecimento do serviço de delivery. Embora a tecnologia se proponha a entregar de tudo, o forte são as comidas. “Antes dos aplicativos, o comerciante tinha que se virar com a entrega. Hoje, tenho tudo lá. O cliente já compra e o aplicativo acha o parceiro para entregar”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de Minas Gerais (Abrasel), Ricardo Rodrigues.
Ainda que sem acesso a números sobre o serviço, ele afirma que muitos estabelecimentos passaram a oferecer delivery por causa dos aplicativos, que vivem um boom desde o ano passado. “Eles agregam na venda. De um tempo pra cá, as pessoas passaram a ficar mais em casa”, comenta. As empresas de aplicativo oferecem descontos e vouchers para os clientes. Em compensação, ficam com parte da venda do estabelecimento. “Isso depende da negociação, pode ir até a 30%”, afirma Rodrigues. Sobre a rotina dos motociclistas, ele afirma que “ninguém é obrigado a pegar a corrida”.
Há dois anos no Brasil, a Rappi, aplicativo de entrega, tem registrado crescimento mensal de 30%, percentual que mostra a velocidade de adesão dos consumidores ao serviço. O carro-chefe são as comidas, mas a tecnologia oferta tudo o que o cliente precisa. “Produtos de farmácia, supermercado, bebidas, manicure e pedicure”, cita o diretor -regional da Abrasel, Diogo Cordeiro, que responde por BH, Brasília e Goiânia.
Segundo ele, o mineiro, inicialmente, resistiu, mas agora se mostrou aberto ao serviço de entrega. “O mercado está sendo muito favorável em Belo Horizonte”, enfatiza. Para se tornar um entregador, é preciso se cadastrar na plataforma, apresentar documentos e, no caso de motocicleta, Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e documento do veículo. Também é necessário participar de uma palestra de capacitação e análise de perfil. As empresas tratam os motociclistas como parceiros. “O que a Rappi faz é intermediar a relação de consumo entre o estabelecimento, o usuário e o entregador”, diz. A iFood tem o mesmo entendimento. (FA)