O Brasil tem potencial para aumentar a produção de gás natural e mais do que dobrar a oferta do combustível na próxima década. No entanto, o programa Novo Mercado de Gás, do governo federal, tem enormes desafios pela frente. É preciso desenvolver a infraestrutura de gasodutos para interiorizar o gás no país e ampliar o mercado consumidor. Para isso, a expansão deve ser integrada ao setor elétrico, afirmam especialistas, sob pena de o insumo ser desperdiçado.
Por enquanto, apenas metade do gás produzido é disponibilizado ao mercado. Em julho de 2019, segundo dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a produção foi de 124 milhões de metros cúbicos por dia (MMm³/d). A reinjeção nas reservas foi de 36%. Descontados o consumo interno (13%) e a queima (3%), sobraram 61,7MMm³/d. Essa produção líquida de gás natural vai mais do que dobrar até 2029, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), quando estarão disponíveis 138MMm³/d.
O que vai ancorar o mercado serão as termelétricas. É fundamental que a agência integre esforços. Algo precisa ser trabalhado desde já, na prática regulatória, com interação intensa entre Aneel e ANP
Gustavo De Marchi, presidente da Comissão de Energia da OAB
Marcos Frederico de Souza, superintendente de Estudos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis da EPE, explica que o desafio do crescimento da produção de gás começa pela limitação de infraestrutura. “Pelos ritmos dos projetos que já estão em andamento, temos perspectiva de dobrar a produção a partir de 2025. Nesse horizonte, as providências para dotar o país de dutos de escoamento têm de começar agora”, alerta.
O especialista destaca que parte do gás é usado na reinjeção para dar vazão ao óleo. “O reservatório funciona melhor com reinjeção. Mas é uma parcela. Se for viabilizado o escoamento, alguns campos deixarão de injetar porções”, estima. Souza assinala que também será necessária infraestrutura para especificar o gás natural. “Para produzir, são necessárias membranas que fazem o processo de separação da molécula. O ideal é ter de 3% a 5% de dióxido de carbono (CO²), mas existem reservatórios nos quais o gás tem 30%, 40%, 60% ou até 80% de CO²”, revela.
Por necessidade técnica, queima-se, injeta-se ou consome-se o gás, enumera Souza. Por questões de segurança, 3% do gás deve ser queimado. “Esse índice já foi de 25%”, lembra. Ele diz ainda que é natural que uma empresa deixe para depois a criação de uma infraestrutura de escoamento do gás, pois o petróleo vale muito mais. “É um comportamento normal antecipar o caixa e retardar a construção dessa infraestrutura”, ressalta. Além disso, é preciso desenvolver o mercado para valer a pena o investimento no escoamento, já que o petróleo é muito mais rentável. “De qualquer forma, a produção vai dobrar. Hoje, o líquido é cerca de 60MMm³/d e vai para quase 140MMm³/d em 2029”, reforça.
SEGURANÇA JURÍDICA
Na opinião de Gustavo De Marchi, presidente da Comissão de Energia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e consultor jurídico da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), a Resolução 16 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que estabelece diretrizes e aperfeiçoamentos à promoção da livre concorrência no mercado de gás, foi apenas o primeiro passo. “Ela traz recomendações, mas com pouco tratamento e atenção para a última ponta da cadeia, que vai de fato levar o gás ao consumidor: o setor de distribuição”, alerta.
Na opinião de Gustavo De Marchi, presidente da Comissão de Energia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e consultor jurídico da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), a Resolução 16 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que estabelece diretrizes e aperfeiçoamentos à promoção da livre concorrência no mercado de gás, foi apenas o primeiro passo. “Ela traz recomendações, mas com pouco tratamento e atenção para a última ponta da cadeia, que vai de fato levar o gás ao consumidor: o setor de distribuição”, alerta.
De Marchi observa que não há uma política firme sobre interiorização do gás. “Isso é fundamental: como o gás vai chegar aos rincões do país?. Sem projeto estruturante não vai dar conta. São necessários incentivos para atrair investimentos. O projeto tem que partir do governo, tem de entrar na pauta”, defende. Outro ponto grave, segundo o especialista, é a ausência da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) no processo. “O que vai ancorar o mercado serão as termelétricas. É fundamental que a agência integre esforços. Algo precisa ser trabalhado desde já, na prática regulatória, com interação intensa entre Aneel e ANP”, sustenta.
O advogado está preocupado com o papel das agências estaduais. “Só o aprimoramento vai dar segurança jurídica para os investidores, com respeito aos contratos de concessão vigentes”, diz. Segundo ele, alguns estados estão querendo sair na frente, sem processo negocial com as distribuidoras. “Não dá para mexer em regulações no afogadilho. Uma das diretrizes é a adoção de boas práticas regulatórias, com análise de impacto.”
No entender de Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (Cbie), o modelo está meio capenga e é preciso desenvolver o mercado urgentemente. “A maior parte do gás do Brasil está no mar. O cara que é dono quer dar um destino, porque precisa tirar o óleo. Antigamente, podia queimar. Hoje, tem limite para isso”, destaca. “Como não é vantajoso exportar porque compete com o gás dos Estados Unidos, mais barato, acaba sendo injetado.”
“O que está certo no modelo é tentar criar uma concorrência na oferta de gás. Hoje, só quem oferta é a Petrobras. Mas não vejo um plano e regulação correta para incentivar a infraestrutura de dutos”, lamenta. Conforme ele, o país tem três unidades de processamento de gás natural (UPGN) e uma malha pequena de transporte e de distribuição. “O choque de oferta vai ocorrer em quatro, cinco anos. Temos esse tempo para construir infraestrutura e interiorizar o gás”, sentencia.
CONCORRÊNCIA
O caminho natural será uma competição entre linhas de transmissão e gasodutos, diz Pires. “Com dutos, pode-se construir uma termelétrica onde for necessária e do tamanho do mercado que for atender. O gasoduto tem a vantagem de poder ser seccionado em vários dutos para levar gás a outros locais. Além disso, as perdas são 10 vezes menores do que nos linhões”, explica. “Mas será necessário criar um fundo de financiamento inicial, porque o gasoduto se rentabiliza em 10 anos, de uma concessão de 30. O privado não faz sozinho.”
O caminho natural será uma competição entre linhas de transmissão e gasodutos, diz Pires. “Com dutos, pode-se construir uma termelétrica onde for necessária e do tamanho do mercado que for atender. O gasoduto tem a vantagem de poder ser seccionado em vários dutos para levar gás a outros locais. Além disso, as perdas são 10 vezes menores do que nos linhões”, explica. “Mas será necessário criar um fundo de financiamento inicial, porque o gasoduto se rentabiliza em 10 anos, de uma concessão de 30. O privado não faz sozinho.”
A integração com o sistema elétrico, defendida por De Marchi e Pires, também foi sugerida por Efrain Pereira da Cruz, diretor da Aneel, durante o 16º Encontro Nacional de Agentes do Setor Elétrico (Enase), realizado no Rio de Janeiro, no fim de agosto. Segundo ele, no cenário mundial, as redes de transmissão de energia elétrica competem com as redes de gás natural, porque ambas são alternativas de levar o abastecimento para todas as regiões do país. Efrain alertou, na ocasião, que é o momento de reavaliar o modelo de parques geradores térmicos próximo às fontes de suprimento das moléculas, porque, se mantido, terá “o condão de engessar o desenvolvimento da indústria”.
O diretor da Aneel ainda destacou, durante o Enase, que o Novo Mercado de Gás, se bem planejado, “poderá ser o verdadeiro condutor de uma modicidade tarifária para todos os brasileiros, mas não pelo setor elétrico, mas também por meio de indústrias mais competitivas, gerando empregos, renda e impostos para municípios, estados e União”.