O Brasil é o segundo país mais desigual do mundo entre aqueles que disponibilizam estimativas com base em dados tributários, só perdendo para o Qatar: 1% da população mais rica – cerca de 1,5 milhão de pessoas – concentra 23,2% da fatia da renda total declarada pelas pessoas físicas ao Imposto de Renda, pouco abaixo dos 27% naquele país do Oriente Médio. A concentração de renda deste pequeno grupo de ricos no Brasil é 164% maior do que na Suécia, onde a fatia do centésimo mais rico responde por 8,8% da renda total. E se por um lado a Suécia, entre as décadas de 1930 até recentemente, assistiu ao encolhimento da fatia de renda do centésimo mais rico de 12,3% para 8,8%, no Brasil, nessas nove décadas, o padrão da distribuição demonstrou uma estável e persistente concentração: 1% mais rico respondeu entre 20% e 25% da renda total.
As conclusões são de Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, sociólogo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Livro de 2019 pela obra Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil – 1926-2013 (Hucitec Editora). O autor também recebeu o primeiro lugar na categoria Humanidades. A original publicação, que ao estudar a desigualdade desloca o olhar para os mais ricos, é baseada em sua tese de doutorado defendida em 2016, que já foi premiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em 2017, e considerada a melhor tese da área de sociologia no Brasil.
“Se 1% dos mais ricos no Brasil têm quase um quarto dos rendimentos, não sobra tanto para o resto. Num país europeu médio, como a França, 1% tem algo em torno de 10% dos rendimentos, portanto esse grupo dos ricos concentra menos da metade da fração dos mais ricos brasileiros”, afirma o pesquisador. “Quando pensamos nos países desenvolvidos, não estamos só considerando a renda média, mas sociedades mais igualitárias. Se quisermos chegar lá, a economia tem de crescer, mas precisamos reduzir a concentração no topo pelo menos pela metade, o que, como demonstra a nossa história, não acontecerá por inércia”, acrescenta o sociólogo.
Diferentemente da parcela mais pobre da população brasileira – que em termos de rendimento é muito parecida entre si –, dentro do grupo dos mais ricos verificam-se grandes diferenças. Os dados de 2013 do Imposto de Renda, que são os mais recentes, indicam que o milésimo (0,1%) mais rico da população brasileira é representado por um grupo de pouco menos de 140 mil pessoas que recebeu em média cerca de R$ 70 mil mensais (cerca de R$ 840 mil ao ano). Essa pequena fração de 0,1% mais rica concentra 10% da renda total declarada no país naquele ano. Já o grupo do 1% mais rico – que tem cerca de 1,5 milhão de pessoas, com rendimentos mensais de aproximadamente R$ 20 mil – faixa alta para o padrão brasileiro –, ganhou quase 23% da renda total, avalia Pedro Ferreira de Souza. “Esse grupo do 1% mais rico é bastante diferente daquele do 0,1% mais rico, que desfruta de uma situação ainda mais privilegiada.
De forma análoga, o grupo do 1% mais rico vive em condições muito diferentes do estrato mais abaixo, por exemplo, dos 10% mais ricos, que ganham cerca de R$ 4 mil por mês, representam aproximadamente 21 milhões e concentram 51% da renda total”, afirma o pesquisador. Naquele ano de 2013, a título de referência, a renda média da população adulta estava em torno de R$ 26 mil por ano (R$ 2,16 mil por mês).
Entre 1926 e 2013, período em que foram analisadas as declarações de Imposto de Renda das pessoas físicas pelo pesquisador, o quinhão apropriado pelos ricos é o traço persistente e marcante da desigualdade brasileira: a concentração no topo combinou estabilidade e mudança, com a flutuação da fração da renda recebida pelo 1% mais rico entre 20% e 25% durante grande parte do tempo. Segundo registra o pesquisador, a permanência da desigualdade deu-se apesar das mudanças econômicas e sociais profundas no país: nesse período, a população multiplicou por seis e o PIB per capita aumentou 12 vezes.
Em nove décadas de avaliação da concentração de renda no Brasil, foi justamente durante os períodos autoritários da história brasileira – o Estado Novo e os primeiros anos da ditadura militar de 1964 – que o grupo de 1% mais rico abocanhou as maiores fatias do bolo. É assim que a metáfora tão explorada pela propaganda do regime militar face ao propalado milagre econômico – “primeiro fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo” – encobriu, na prática, uma situação precisamente inversa: o bolo cresceu, mas nunca foi tão mal dividido. “A fração do 1% mais rico, que chegara a 17%/19% durante o período democrático entre 1946 e as vésperas do golpe, aumentou continuamente até 1971, quando atingiu 26%, maior percentual desde os anos 1940”, observa o pesquisador.
Outra flutuação positiva da desigualdade se verificou durante o período inflacionário da transição democrática. “Com a inflação disparando, foi um momento de crise e de transição complicada”, avalia Pedro Ferreira de Souza. Já no período mais recente, no tocante aos mais ricos não houve modificações significativas. “As mudanças mais radicais e positivas dos últimos tempos, verificadas pela redução do índice de Gini ocorreram na base ou no meio da pirâmide social, e não na fatia apropriada pelos mais ricos”, afirma ele.
Três perguntas para...
Pedro Ferreira de Souza
sociólogo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
As democracias e a possibilidade de mobilização e participação política pressionam por melhor distribuição da renda numa sociedade?
Costumo dizer que em geral uma ditadura é mais eficiente em aumentar a desigualdade do que a democracia consegue reduzir a desigualdade. Após o golpe de 64, a desigualdade seguiu aumentando, mas depois nem sempre se vê a redução. Tivemos uma transição, com novidades e méritos, como a Constituição de 1988, que foi o resultado de uma reabertura negociada para não provocar rupturas. Tivemos um pacto, que promoveu inclusão dos muitos pobres e ao mesmo tempo sem mexer nos muito ricos. A vida dos muito pobres melhorou no acesso aos serviços e à escolaridade. E mais recentemente, quando combinamos informações dos ricos com mais pobres, verificamos que os ricos conseguiram defender as suas posições, embora os 50% mais pobres tenham conseguido melhorar de posição. Quem ficou no meio, em termos relativos, perdeu espaço.
A sua série história vai até 2013, mas os dados mais recentes do IBGE indicam queda na renda média do brasileiro. A desigualdade está aumentando nos últimos anos?
Existem dados mais novos e recentes, e o que mostram é preocupante: entre 2015 e 2018, a desigualdade aumentou. E ainda mais preocupante é que a renda dos mais pobres caiu. A minha dúvida é se isso ainda é reflexo da crise ou se a nossa recuperação continua aprofundando o padrão persistente. Esta é uma grande dúvida. Olhando os dados do Imposto de Renda não esperaria aumento grande, pois a desigualdade já é muito alta. Não conhecemos países piores do que o país. Possivelmente terá leve piora.
Quais as consequências de tamanha desigualdade para o desenvolvimento do Brasil e a estabilidade democrática?
Por um lado, a desigualdade é tão grande que os mais ricos conseguem capturar muito do que o Estado faz e de seus benefícios. Influenciam muito o processo político. E a desigualdade muito alta afastará o país do ideal de igualdade de oportunidades. Nesse sentido, não se pode falar em meritocracia. Filho de muito ricos não dá para comparar no acesso à educação com os muito pobres e desperdiçamos muitos talentos. Esse nível de desigualdade não é funcional para o crescimento econômico. Além disso, sob a perspectiva política, há dificuldade grande para construir acordos, pois os grupos são muito diferentes entre si, a própria política fica confusa. E quando há período de crescimento as coisas ficam mais fáceis, mas quando as condições não favorecem o processo é mais travado. O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo. Não temos dados de todos, mas existe um padrão no mundo. Nos países desenvolvidos, o grupo 1% mais rico tem em média menos de 15% da renda total. Isso abarca não só países ricos como também países não ricos. Os Estados Unidos eram típicos até os anos 70, mas piorou muito a concentração nos últimos 40 anos. Não adianta pensarmos que o Brasil vai virar a França por inércia. Se continuarmos como estamos, não haverá mudança no padrão. Nem haverá mudança no crescimento, pois temos problema de produtividade. É importante discutir aonde queremos ir. Até para as opções ficarem claras. O que não parece viável é continuar achando que fazer o que estamos fazendo teremos resultados diferentes.