Brasília – Na casa de Anna Paula, não faz muita diferença quem paga as contas. Já faz oito anos que ela e o marido dividem as obrigações mensais de acordo com as possibilidades de cada um, já que, ao contrário dela, que é servidora pública e tem um salário fixo, ele é autônomo e nunca sabe quanto vai receber no fim do mês. E, há quatro meses, definitivamente, é ela quem cuida da maior parte dos custos da casa e da filha de 7 anos, pois o marido se acidentou e precisou entrar de licença médica.
E Anna não é a única que assumiu o ‘comando’ de casa recentemente. Levantamento da Consultoria IDados, realizado com base nos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que o número de mulheres que são responsáveis financeiramente pelos domicílios vem crescendo a cada ano e já chega a 34,4 milhões. Isso significa que quase metade das casas brasileiras são chefiadas por mulheres – situação bem diferente da que era vista alguns anos atrás.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o percentual de domicílios brasileiros comandados por mulheres saltou de 25%, em 1995, para 45% em 2018, devido, principalmente, ao crescimento da participação feminina no mercado de trabalho. “As mulheres ocupam um espaço cada vez maior do mercado de trabalho e vêm alcançando maiores remunerações, apesar de a desigualdade salarial entre gêneros ainda persistir. Por isso, contribuem cada vez mais com a renda das famílias”, explicou a pesquisadora do Ipea, Luana Simões.
Esse movimento, porém, se acentuou nos últimos anos, depois da crise econômica. Só entre 2014 e 2019, quase 10 milhões de mulheres assumiram o posto de gestora da casa, enquanto 2,8 milhões de homens perderam essa posição no mesmo período. “A participação feminina entre os chefes de domicílio evolui desde 2012, ao passo que a masculina cai. Mas cresceu especialmente durante a crise, porque, na recessão, os homens sofreram mais com a perda de emprego e com a redução salarial, fazendo com que mais mulheres se tornassem as responsáveis por prover a renda de casa”, explicou a pesquisadora da consultoria IDados Ana Tereza Pires.
Com isso, também houve, uma mudança significativa no perfil das mulheres que são chefes de família. Luana lembra que, alguns anos atrás, a maior parte das mulheres que eram chefes de domicílio estavam nessa posição basicamente porque haviam se separado do marido e, por isso, foram forçadas a assumir o comando da casa. Hoje, quase metade dessas mulheres é chefe de família mesmo vivendo com o companheiro, como acontece com Anna Paula.
Segundo o Ipea, 43% das mulheres que são chefes de domicílio hoje no Brasil vive em casal – sendo que 30% têm filhos e 13% não. Já o restante das 34,4 milhões das responsáveis pelo lar se dividem entre mulheres solteiras com filho (32%), mulheres que vivem sozinhas (18%) e mulheres que dividem a casa com amigos ou parentes (7%). “Elas não estão mais ali porque foram abandonadas. É um movimento que faz parte do processo de empoderamento feminino e deixa as mulheres cada vez menos vulneráveis socialmente”, frisa Ana Tereza.
Até quem assumiu a posição de chefe do lar depois da separação concorda que o papel de ‘coitadinha’, que cabia às mulheres que precisavam se virar por conta própria depois de desfazer a união conjugal, ficou para trás há um bom tempo. A auxiliar de limpeza Maria Lúcia da Silva, de 37 anos, é um exemplo disso. Para ela, que está no comando da casa há dois anos, desde que se separou do marido que não a deixava trabalhar, o crescimento das mulheres no comando do lar também reflete a posição de independência que elas querem, cada vez mais, assumir na sociedade.
“Ter essa liberdade de poder fazer e comprar o que quiser, sem pedir para o esposo, é gratificante”, afirmou. “As coisas mudaram. Hoje em dia, a mulher tem que ser dona de si e ter as mesmas oportunidades que eles possuem”, concorda a microempresária Antônia Barbosa, de 53, que mantém a casa, os dois filhos e o neto desde que se divorciou, há 12 anos. “Administrar um lar me ensinou a viver, colocou um objetivo na minha vida, me tornou mais forte. Antigamente, as pessoas faziam coisas por mim. Agora, eu corro atrás daquilo que eu quero”, acrescenta Antônia, que educa o neto com o pensamento de que homens e mulheres são iguais.
A professora Ruth Pena, de 40, tenta transmitir o mesmo ensinamento ao filho Leandro, que hoje, aos 20 anos, não vê problema na situação em que a mulher é a chefe do lar seguir crescendo no Brasil. “Minha mãe é o maior exemplo que eu podia ter de força e empenho. Mulher guerreira, esforçada, ela nunca deixou faltar nada para mim ou para minha irmã”, conta Leandro.
Renda baixa Porém, nem tudo são flores. É que, além de enfrentarem uma dupla jornada cada vez maior para pagar as contas e cumprir os afazeres de casa, boa parte dessas mulheres ainda está nas classes mais baixas da população e ganha menos que os homens. Por isso, boa parte delas tem uma renda mensal inferior à de outras famílias. “Essas mulheres estão em todas as classes sociais, mas a maior parte é de negras que estão nas faixas de renda mais baixas”, admite Luana, do Ipea.
Mesmo com esses desafios, contudo, as especialistas apostam que o número de mulheres chefes de domicílio vai continuar crescendo no Brasil. Afinal, ela estão mais empoderadas e, por isso, cada vez mais dispostas a assumir as despesas de casa e a formar novos arranjos familiares — muitas têm até adiado ou desistido da maternidade para, entre outras coisas, focar na carreira profissional.
E, se depender de qualificação, elas têm tudo para ocupar cada vez mais espaços no mercado de trabalho — o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) explica que, hoje, as mulheres têm, em média, oito anos de estudo no Brasil, enquanto os homens ficam nos 7,7 anos. “Resta saber como o mercado de trabalho atual, que está se recuperando da crise, apresenta salários cada vez menores e um número crescente de trabalhadores informais, vai lidar com essa situação”, pondera Luana.
Longe da chefia e com renda menor
Brasília – A condição de chefe ainda não é uma realidade profissional para boa parte das mulheres que têm assumido o comando dos domicílios brasileiros. É que, apesar de estar contribuindo cada vez mais com as despesas domésticas, a maior parte das que estão no mercado de trabalho ainda ganha menos que os homens e tem menos oportunidades de ascender profissionalmente.
Segundo o IBGE, as mulheres ocupam 41,8% dos cargos de direção e gerência do mercado de trabalho. E a diferença é ainda maior quando se olha para os conselhos de administração: hoje, as mulheres ocupam apenas 63 dos 579 assentos disponíveis nos conselhos das empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
“Mesmo com um número cada vez maior de mulheres nas universidades e no mercado de trabalho, hoje, apenas 10% dos assentos dos conselhos de administração são ocupados por pessoas do sexo feminino. E só 12 mulheres são as presidentes desses conselhos”, observa a diretora de Vocalização e Influência do IBGC, Valéria Café, frisando que 87 empresas listadas na bolsa ainda não têm nenhuma mulher em seus conselhos.
“No serviço público, a situação é parecida. Basta ver o número de cargos em comissão que é ocupado por mulheres. Nós quase não chegamos aos cargos de alta direção, porque ainda existe uma barreira forte. Na hora de promover um homem, por exemplo, não perguntam se ele tem filho, mas a nós, sim. E isso impacta muito o nível salarial”, relata Anna Paula.
É por conta disso que o IBGC promove um programa de mentoria que ajuda a colocar as executivas brasileiras nos cargos de gestão das empresas. Valéria explica que, além de não refletir o processo de empoderamento feminino, a baixa participação das mulheres pode ser prejudicial até para os rendimentos das companhias. “A diversidade, seja de gênero, raça, idade, região ou profissão, traz mais resultado e mais inovação para as empresas”, explicou.
Diferença salarial Esse, contudo, não é o único desafio que as mulheres precisam enfrentar no mercado de trabalho. É que, apesar de já responderem por 43,8% dos brasileiros que estavam trabalhando em 2018, elas ainda ganham 20,5% a menos que os homens. É por isso que Ruth Pena precisa ter uma jornada tripla para poder dar conta das obrigações do lar e dos dois filhos. “Meu dia começa às 5h. Ministro aula em duas escolas para poder complementar a renda, pois só em uma não daria para sustentar um lar”, conta.
Segundo o IBGE, o rendimento médio das trabalhadoras que têm entre 25 e 49 anos de idade é de R$ 2.050. Isto é, R$ 529 menos que os R$ 2.579 normalmente pagos aos homens que trabalham nesta mesma faixa etária. A diferença é ainda maior para as mulheres que conseguiram superar as barreiras profissionais e ocupam cargo de chefia. As que são diretoras e gerentes têm rendimento médio de R$ 4.435 no Brasil — valor 28,7% inferior aos R$ 6.216 recebidos pelos homens que estão neste mesmo posto.