São Paulo – A Serra do Espinhaço, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, abriga 100 espécies de flores típicas do cerrado. Chamadas de sempre-vivas (porque demoram para perder a coloração mesmo depois de colhidas), elas garantem há mais de um século o sustento das comunidades locais.
A coleta de flores se dá na época da seca e é um grande acontecimento. Famílias inteiras vão para o alto da serra e permanecem lá de três a seis meses, combinando a colheita das sempre-vivas com o manejo do gado. Nesse período, residem em “lapas”, como são chamadas as grutas de formação rochosa características da região do Espinhaço.
No alto da montanha, entre uma colheita e outra, as famílias se unem para comemorar sua tradição e até casamentos são celebrados (porque a serra dá sorte, segundo acreditam). Agora, os apanhadores de flores esperam conquistar um feito extraordinário: serem reconhecidos pela FAO, a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, como patrimônios da humanidade.
Nos últimos 17 anos, a FAO, Agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, tem se dedicado a identificar atividades agrícolas que preservam técnicas ancestrais de manejo da terra e que mantêm uma relação sustentável com a natureza.
Os lugares reconhecidos com essas características recebem o selo GIAHS, sigla em inglês para Sistema Agrícola Tradicional Globalmente Importante, e passam a ser considerados “guardiões mundiais da biodiversidade.” De certa forma, a chancela GIAHS é a versão agrícola da lista “Patrimônio Mundial da Humanidade”, criada pela Unesco para destacar locais de grande valor histórico, cultural e científico.
“O conceito GIAHS é mais complexo do que um local chamado de área protegida”, diz a FAO. “Um GIAHS é um sistema vivo e em evolução de comunidades humanas que, ao longo de gerações, preservam um intrincado relacionamento com seu território. Ele é constituído por paisagens de impressionante beleza que combinam biodiversidade agrícola, ecossistemas resilientes e um valioso patrimônio cultural.”
Ao criar a distinção, a FAO não estava interessada apenas em conceder um selo de reconhecimento. A intenção maior é aumentar a conscientização sobre a importância desses sistemas agrícolas e estimular ações capazes de preservá-los. Segundo a FAO, eles estão ameaça dos por uma série de desafios, incluindo urbanização crescente, mudanças nas estruturas sociais e econômicas, negligência política e falta de incentivos para a sua conservação. A lista da FAO, portanto, é a prova definitiva que é possível conciliar produção agrícola com preservação ambiental.
Desde 2002, quando o programa foi lançado, 52 locais em 21 países mereceram a honraria. Por enquanto, nenhum projeto brasileiro está na lista – a comunidade de apanhadores de flores da Serra do Espinhaço pode ser a primeira. Há dois anos, o rigoroso comitê científico da FAO avalia o sistema brasileiro, que passou por várias etapas seletivas que incluíram a análise de um dossiê com dados históricos e a visita in loco dos especialistas das Nações Unidas. A decisão final deverá ser tomada até julho de 2020.
Os sistemas escolhidos pela FAO como guardiões da biodiversidade são surpreendentes.
No século 15, agricultores do Vale Souf, na província de El Oued, na Argélia, tiveram uma ideia engenhosa para cultivar palmeiras em pleno Saara argelino, região de recursos hídricos escassos e que frequentemente é atingida por violentas tempestades de areia.
As raízes são plantadas próximas do lençol freático, em crateras de 80 a 200 centímetros de diâmetro e cinco metros de profundidade. Assim, elas têm fácil acesso à água, sem precisar de chuva ou irrigação, e as árvores crescem mesmo em um ambiente hostil.
Para evitar que a areia fustigue as palmeiras, elas são posicionadas de acordo com a direção e velocidade dos ventos. A técnica secular transformou a aridez das dunas em uma constelação de jardins, tornando-se um marco das habilidades agrícolas humanas. Quando as plantas prosperam, animais são atraídos para o lugar e, assim, nasce o que verdadeiramente pode se chamar de oásis. Segundo o governo local, existem atualmente 9,5 mil ghouts moldando a paisagem única de El Oued.
A história milenar chinesa prova que a agricultura pode ser parceira da sustentabilidade.
Poucas atividades agrícolas são tão tradicionais e permaneceram imunes à passagem do tempo quanto os terraços de arroz de Honghe Hani, na província de Yunnan, no sudoeste chinês, quase na fronteira com o Vietnã.
Os primeiros registros do cultivo do grão nas montanhas locais datam de 1,3 mil anos. Desde então, quase nada mudou. Os Hani, como são chamados os moradores da região, desenvolveram um complexo sistema de canais para levar a água abundante das florestas que ficam no topo das montanhas para os terraços logo abaixo.
As plantações que ocupam a totalidade das encostas íngremes fizeram surgir um emaranhado de recortes nas montanhas que, de acordo com a posição do sol e da época do ano, formam um conjunto de luzes e cores únicos no mundo. Durante a Dinastia Ming (1368-1644), o Imperador deu ao povo de Hani o título de “Escultores da Montanha Mágica.”
No Irã, túneis subterrâneos milenares são um exemplo único da capacidade agrícola humana.
Nenhuma atividade consome tanta água quanto a agricultura. Por essa razão, a humanidade foi obrigada a desenvolver ao longo dos séculos técnicas capazes de superar as dificuldades impostas por ambientes inóspitos.
Na antiga Pérsia, atual Irã, agricultores ancestrais criaram o Qanat, sistema de distribuição e gestão de água nascido no primeiro milênio antes de Cristo. O Qanat consiste na escavação de poços verticais que levam água de um local com reservas abundantes para outros mais secos. Entre os poços, são escavados túneis de ligação, através dos quais a água corre pela força da gravidade.
Ainda hoje, quase 3 mil anos depois dos primeiros registros dos Qanats, o processo de escavação dos túneis é manual, feito com ferramentas simples como martelos e talhadeiras. Atualmente, essas estruturas subterrâneas estão presentes em 34 países, a maioria deles na Ásia e África. No Irã, existem 40 mil Qanats ativos, que perfazem uma extensão total de 220 mil quilômetros.
A lista da Fao também destaca o povo massai, do Quênia e Tanzânia, os inventores da agricultura sustentável. Os massai desenvolveram um sistema pastoril que, ao longo dos séculos, se adaptou ao escasso suprimento de água e à falta de disponibilidade de áreas de pastagens.
Para otimizar os recursos, combinam a combinam a criação de búfalos, cabras e ovelhas com o cultivo de milho e feijão, revezando a exploração do solo para não permitir que as pastagens ocupem espaços indevidos, ou que as lavouras saturem as áreas destinadas ao animais.
Ou seja: muito antes de as grandes empresas agrícolas falarem em uso sustentável do solo, os massai já faziam isso, sem jamais perceber que, de certa forma, estavam antecipando o futuro do agronegócio. Seminômades, os massai são reconhecidos por sua íntima conexão com a natureza – outra lição que deixaram para as futuras gerações.