Responsáveis por quase 70% da comida que chega à mesa dos brasileiros, os agricultores familiares inovam para conseguir escoar a produção, vencendo as dificuldades impostas pelo avanço do novo coronavírus, e já começam a operar os sistemas on-line de vendas. É a tecnologia chegando à pequena produção nos municípios do interior. A realidade nessas lavouras, em geral, é de sacrifício com a falta de programas públicos de apoio à comercialização, algo também dramático para quem vive da renda da horta de fundo de quintal nas zonas urbanas.
As redes sociais se tornaram grandes aliadas dos agricultores familiares para a divulgação e venda dos seus produtos, em meio à pandemia, ao facilitarem os serviços de entrega a domicílio. O delivery que, hoje, parte do campo cresceu acima de 200%, na avaliação do engenheiro-agrônomo Lucas Castro Alves de Sousa, que gerencia os negócios da família nas Granjas Vista Alegre, em Capim Branco, Região Metropolitana de Belo Horizonte.
As restrições de circulação devido à COVID-19 afetaram pouco a produção, exigindo pequenos ajustes, mas a comercialização mudou muito, admite o engenheiro: “Hoje, a parte de produção está normal, mas não sabemos ainda se haverá reflexos futuros”, reconhece.
Houve queda nas vendas aos supermercados, setor com permissão para continuar a funcionar, e das cinco feiras de orgânicos realizadas na capital somente duas funcionam, mesmo assim apenas para entrega de encomendas. “As entregas a domicílio ou pontos de apoio obedecem às boas práticas e procedimentos determinados pelas autoridades sanitárias do município”, explica Lucas. As máquinas de cartão são higienizadas a cada operação e a atenção foi redobrada nos setores de produção, embalagem e entrega.
Em Viçosa, na Zona da Mata mineira, as feiras municipais, que ocorrem duas vezes por semana, foram mantidas após passarem por adaptações, conforme as recomendações estabelecidas pelo governo mineiro. O programa Quintal Solidário, que conta com a participação de 30 produtores, foi suspenso para evitar aglomerações. Essa feira era realizada uma vez por semana na seção sindical dos Docentes da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e registrava fluxo médio de 500 pessoas a cada edição, entre consumidores e expositores de hortifrutigranjeiros, da agroindústria familiar e de artesanato.
“Levando em consideração as recomendações para manter o distanciamento entre pessoas e evitar aglomerações para garantir a segurança dos expositores e consumidores, vimos que seria difícil manter o Quintal Solidário. Mas muitos agricultores vivem graças ao rendimento nas feiras. Então construímos uma estratégia para criar o Quintal Solidário virtual”, explica a professora do departamento de Nutrição e Saúde da UFV e coordenadora de feira, Sílvia Eloiza Priore.
Os agricultores providenciaram fotos de seus produtos, além das informações de preços e contatos para que os organizadores da feira pudessem fazer postagens nas redes sociais. As vendas passaram a ser feitas por encomenda, com entrega na casa dos consumidores.
Vítor Gomide aderiu à divulgação pelas redes sociais para entrega direta ao cliente. Produtor de queijos e outros produtos lácteos distribuídos em feiras e supermercados, ele viu a comercialização reduzir após a recomendação de que as pessoas ficassem em casa, e do fechamento de alguns pontos de venda. Além da divulgação pelas redes sociais do Quintal Solidário, o feirante também criou uma conta própria no Instagram. “Minha irmã trabalhava num salão de beleza que fechou por causa do coronavírus. Como ela estava acostumada a lidar com redes sociais, sugeriu que a gente criasse uma conta para divulgar e vender nossos produtos”, conta.
A fabricação dos produtos lácteos ocorre pela manhã, com a ajuda da mãe. Durante a tarde, Vítor faz entregas e conta que ainda está se adaptando ao novo modelo de venda. “Foi uma alternativa que encontramos para amenizar a situação, mas o resultado está até surpreendendo. Por enquanto, não cobramos taxa de entrega. E muitos consumidores estão pedindo que a gente continue com as entregas mesmo depois que esta situação melhorar”.
Confiança
Em Unaí, no Noroeste de Minas Gerais, Mércia Melo, 53 anos, produtora de tapioca também optou pela divulgação nas redes sociais, com entrega a domicílio, depois que as feiras das quais ela participava foram suspensas. Ela trabalha como auxiliar na secretaria de uma escola estadual, mas tem na iguaria originária da região Nordeste do estado sua principal fonte de renda, dinheiro que, segundo Mércia, é fundamental para o sustento da família e para manter o filho na faculdade. “Ele estuda em outra cidade e temos que pagar aluguel, alimentação e a faculdade dele”, diz a produtora. Os contatos são feitas pelas redes sociais e celular.
A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater-MG) orienta os agricultores sobre cuidados na produção, na hora de fazer a entrega e no contato com os consumidores. “Alertamos aos agricultores a não receber dinheiro. O pagamento deve ser feito preferencialmente por cartão de crédito ou transferência bancária, para diminuir o risco de contaminação”, explica a técnica da Emater em Viçosa, Vera Lúcia Rodrigues Fialho.
Esquecidos e sem proteção
Aquela ideia de que quem vive no campo não passa fome, nem necessidades, porque é “só plantar que terra retribui”, é uma visão romântica que nem sempre condiz com o cotidiano dos habitantes de zonas rurais e urbanas das pequenas cidades. “Nada é tão simples assim, as mudanças no clima alterando a produtividade, a falta de compradores contínuos e os altos preços cobrados nos comércios locais deixam muitos em situação precária. E agora com essa pandemia, a situação se agravou”, desabafa a doméstica Adriana Meireles, de 30 anos, que não vê nenhum programa de socorro a essas pessoas. “Tudo é voltado para as populações dos grandes centros urbanos e grandes e médios produtores”, afirma.
Adriana trabalha em Belo Horizonte e é filha de Marlene Meireles Reis de 49, moradora no município de Santo Antônio do Itambé, de pouco mais de 4 mil habitantes, porta de entrada do Parque Estadual do Pico do Itambé, a 300 quilômetros da capital. Marlene, como muitos outros moradores do município, vive da renda obtida com a comercialização de verduras e legumes expostos na feirinha local e fornecimento de merenda escolar. Ambas as atividades estão suspensas. O dinheiro recebido sustenta a casa onde mora com um filho de 22 anos e um neto, de oito, filho de Adriana. Ajuda ainda outro filho, com mulher e três crianças. O pai sofreu acidente no ano passado e está afastado do trabalho.
A situação não é diferente para 13 famílias produtoras de hortifrútis na zona urbana de Sete Lagoas, Região Central do estado, com 240 mil habitantes distante 70 km de BH. Elas participavam do programa Direto da Roça para entrega de verduras e legumes a domicílio na cidade e em Belo Horizonte que está suspenso desde 19 de dezembro do ano passado. Os pedidos eram feitos pelo whastapp.
“As chuvas do final de 2019 arrasaram as plantações. Quando começamos a nos recuperar, a prefeitura (de Sete Lagoas), que fornecia o transporte e ajudava na logística para distribuição, suspendeu a parceria e não conseguimos dar continuidade”, conta Cirlene Santos Silva, coordenadora do programa que contava com apoio técnico, logístico e contábil da Emater local. O programa Hortas Urbanas, também suspenso, beneficiou mais de 300 famílias até o início do ano.