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Estado de Minas

O que esperar do Bolsa Família sem o Renda Brasil?

Após o governo desistir de projeto, rumos da verba disponível para a transferência de renda em 2021 são incertos. Para economistas, caso opte por turbinar programa atual, Bolsonaro precisará ampliar ainda mais base de beneficiários


20/09/2020 11:33

(foto: Pacífico/CB/D.A Press )
(foto: Pacífico/CB/D.A Press )
Embora tenha instalado mais uma crise no governo de Jair Bolsonaro, a discussão sobre o fortalecimento de rede de assistência social brasileira é necessária e urgente. A ideia do presidente era substituir o Bolsa Família pelo Renda Brasil assim que o auxílio emergencial chegasse ao fim. Esbarrou, contudo, em um impasse orçamentário que fez o chefe do Executivo perder a paciência com a equipe econômica e delegar para o Congresso a missão de encontrar uma forma de financiar a criação do Renda Brasil ou ampliação do Bolsa Família. Especialistas explicam que o Bolsa Família conseguiu amparar milhões de famílias de baixa renda nos últimos anos. Porém, precisa ser ampliado e modernizado, pois não é reajustado há anos e não tem orçamento para amparar todos os brasileiros que correm o risco de cair na linha da pobreza devido à crise econômica da COVID-19.
A discussão sobre a criação de um novo programa social ronda o governo desde o ano passado, mas ganhou força durante a pandemia, após Bolsonaro ver a sua popularidade crescer devido aos pagamentos do auxílio emergencial e decidir criar o próprio programa social para pavimentar o caminho para a reeleição em 2022. Parlamentares reconhecem que a missão é difícil, pois não há brecha no Orçamento de 2021 para o governo bancar o programa do jeito que Bolsonaro imaginava, com um benefício mensal de aproximadamente R$ 300 para os atuais segurados do Bolsa Família e para parte dos brasileiros de baixa renda que hoje recebem o auxílio emergencial. No entanto, estão dispostos a avançar com este debate, pois reconhecem que, apesar dos riscos fiscais, o custo político e socioeconômico de não fazer nada de diferente após o fim do auxílio emergencial também é grande.

“Não podemos esquecer que foram descobertos quase 10 milhões de brasileiros que estavam fora de qualquer programa social. O que você vai fazer com esses brasileiros? Vai esquecer que eles existem em janeiro? Não. Eles vão continuar existindo. Não vai mudar só porque mudou o ano. Estas 10 milhões de pessoas vão continuar desempregados. Então, tem que ser criada alguma coisa que abrace essas pessoas”, argumentou o senador Marcio Bittar (MDB-AC).

Sinal verde

O parlamentar é relator do Orçamento de 2021 e do Pacto Federativo e disse ter recebido sinal verde do presidente Jair Bolsonaro para incluir um novo programa social no Orçamento, mesmo depois de o chefe do Executivo ter suspendido as discussões sobre o Renda Brasil no governo por conta do desgaste gerado pelas propostas da equipe econômica, que pensava em bancar o programa por meio da revisão do abono salarial ou do congelamento de aposentadorias e pensões.

O discurso de Bittar acende um alerta do que vem por aí. É que o auxílio emergencial já chegou a 67 milhões de brasileiros. Porém, só 15,2 milhões de famílias de baixa renda devem ser atendidas pelo Bolsa Família em 2021. Por isso, sobra um contingente enorme de brasileiros que correm o risco de cair na linha da pobreza caso o governo não amplie a sua rede de proteção social. Afinal, lembram os especialistas, a economia brasileira pode até estar dando sinais de reação após o choque sofrido no início da covid-19, mas o mercado de trabalho ainda não tem condições de absorver todos os brasileiros que perderam renda na pandemia. Logo, muita gente pode ficar sem auxílio emergencial e também sem emprego no início de 2021.

“Se tivéssemos uma recuperação econômica fenomenal, essas pessoas poderiam voltar ao mercado de trabalho, formal ou informal. Mas, como a perspectiva é de uma retomada lenta, muitos desses brasileiros não vão conseguir se inserir no mercado e podem entrar em uma situação de vulnerabilidade. O impacto social será enorme, com aumento da desigualdade, da fome, da violência, da crise”, alertou o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Joilson Cabral.

Diretor da FGV Social, Marcelo Neri calcula que até 13 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza devido ao auxílio emergencial e podem voltar a passar dificuldades caso nada seja feito após o benefício. E diz que a maior parte das famílias que perderam renda por conta da crise da covid-19 não está entre as 15,2 milhões de famílias que serão atendidas pelo Bolsa Família em 2021. É que esse número, previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), representa a inclusão de 1 milhão de domicílios no Bolsa Família, que hoje atende 14,2 milhões de famílias. Ou seja, praticamente abrange apenas a lista de espera que já havia no benefício antes mesmo da crise do novo coronavírus. “É a fila visível de pessoas que já estavam cadastradas e cumpriam as exigências do programa. Mas, também, existe uma fila invisível que começou a aparecer com o auxílio emergencial e muitas pessoas que deixaram de ter renda na pandemia”, alertou Neri.

Linha da pobreza

Os economistas concluem, então, que se optar por turbinar o Bolsa Família em vez de criar um programa social, o governo de Jair Bolsonaro vai precisar ampliar ainda mais a base de beneficiários do programa. E dados do próprio Executivo indicam o problema. É que, hoje, já existem 28,48 milhões de famílias no Cadastro Único. Destas, cerca de 16,46 milhões já viviam em situação de pobreza ou extrema pobreza em maio deste ano. Isto significa 1,2 milhão a mais que a base de beneficiários prevista para o Bolsa Família em 2021.


A ampliação da base de segurados ainda passa pela revisão dos critérios de pobreza do Bolsa Família. Hoje, o programa considera que vivem em situação de extrema pobreza as famílias cuja renda mensal per capita é de até R$ 89. Já a linha de corte da pobreza é de R$ 178. Porém, os especialistas dizem que esses valores estão defasados.

Segundo o integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), José Antônio Moroni, esses valores foram estipulados pelo Banco Mundial quando o dólar estava perto dos R$ 2 e não nos mais de R$ 5 de hoje em dia. “Os valores estão 19% defasados em relação a 2014. E a extrema pobreza já aumentou 67% entre 2014 e 2019. Então, o valor é insuficiente, precisa ser melhorado”, reforçou Marcelo Neri.

A FGV, por exemplo, considera uma linha de pobreza de R$ 250 de renda mensal per capita. E a Organização das Nações Unidas (ONU) tem trabalhado com um critério ainda mais robusto: US$ 67 dólares para a extrema pobreza e US$ 140 para a pobreza, isto é, cerca de R$ 354 e R$ 740, respectivamente, na cotação atual — quase quatro vezes mais do que os critérios usados pelo Bolsa Família.

Valor

Outro ponto que precisa ser revisitado no Bolsa Família é o valor mensal do auxílio que é pago às famílias de baixa renda. Afinal, o benefício médio do programa é de R$ 190 atualmente. O valor não cobre nem metade da cesta básica — segundo a última Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), realizada em julho deste ano, a cesta básica variava de R$ 392,75 a R$ 526,14 nas capitais brasileiras.

Além disso, lembrou o integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), José Antônio Moroni, o valor não é reajustado desde o governo de Michel Temer, em 2018. E, antes disso, a quantia média do Bolsa Família era de R$ 180 desde julho de 2016. “Não há lei que garanta uma atualização periódica do benefício. Por isso, o período e o valor desse reajuste dependem, exclusivamente, da vontade do Executivo”, afirmou o representante do Inesc.

Levantamento realizado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que os valores modestos impedem que o benefício seja mais eficaz no combate à pobreza. O estudo explica que esta é uma das razões pelas quais 64% dos beneficiados do Bolsa Família ainda não conseguiram sair da situação de extrema pobreza.

A baixa taxa de ascensão social do Bolsa Família, por sinal, é uma das queixas do governo de Jair Bolsonaro ao programa criado em 2003, no governo Lula. Nos vários discursos em que defendeu a criação do Renda Brasil, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, explicou que uma pessoa que sai do Bolsa Família para ocupar um posto de trabalho de carteira assinada não tem a chance de voltar automaticamente ao programa caso perca o emprego. Ela precisa voltar à fila de espera do programa, que pode durar anos. Por isso, segundo o ministro, muita gente prefere ficar ganhando os R$ 190 do Bolsa Família e ir complementando a renda familiar com bicos e atividades informais. Uma das propostas do Renda Brasil era, justamente, garantir a reinserção automática dos brasileiros que caíssem dessa “rampa de ascensão social” e incentivá-los com oportunidades de qualificação e inserção profissional.

Custos econômico e político

Caso não consiga tirar do papel o plano de fortalecer a rede de assistência social, o presidente Bolsonaro ainda pode sofrer com uma economia bem mais morna do que o esperado no próximo ano. Especialistas explicam que, hoje, o que tem sustentado a recuperação de boa parte da economia brasileira é o auxílio emergencial. Afinal, o benefício já injetou mais de R$ 200 bilhões na economia brasileira e, até o final do ano, vai entregar, ao todo, R$ 321 bilhões aos brasileiros de baixa renda, que têm aplicado esses recursos no consumo de bens essenciais e, com isso, ajudado a movimentar o comércio e a indústria brasileira. Há um receio, então, de como vai se comportar a economia após esses pagamentos. E muitos analistas dizem que a retomada econômica vai ficar ainda mais lenta se nada for feito após o auxílio.

O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, calcula que a queda do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil será de 4,8% neste ano, mas poderia chegar a -7,1% se não fosse o auxílio emergencial. Por isso, diz que o fim do auxílio também terá um impacto significativo no PIB de 2021. Vale calcula que o impacto será de -1,9%, mesmo se o governo criar um benefício mais robusto do que o Bolsa Família, que pague R$ 250 por mês a 25 milhões de pessoas. Afinal, neste cenário, a injeção anual de renda cairia dos mais de R$ 300 bilhões do auxílio emergencial para cerca de R$ 75 bilhões.

Ele avisa, ainda, que esse impacto pode ser de -2,4% no PIB caso não haja nenhum reforço na rede de assistência social em 2021. “O impacto no ano que vem não é trivial e é um empecilho para uma recuperação mais vigorosa”, alertou o economista, ressaltando que “isso reforça o cenário de crescimento baixo em 2021”. Para a MB Associados, o PIB do Brasil vai cair 4,8% neste ano e crescer 2,2% em 2021 — projeção mais baixa do que a do governo, que projeta uma queda de 4,7%, em 2020, e uma recuperação de 3,2%, em 2021.

Aprovação

Todo esse impasse ainda pode repercutir negativamente na popularidade do presidente Bolsonaro, que viu seu índice de aprovação subir de 33% para 37%, a melhor taxa desde o início do mandato, em meio à pandemia. Analistas explicam que esse aumento de aprovação veio, sobretudo, do Norte e do Nordeste, onde os pagamentos do auxílio emergencial garantiram a sobrevivência de milhões de pessoas de baixa renda na quarentena.

“Da mesma forma que muita gente pode voltar à pobreza, a popularidade de Bolsonaro pode voltar para os níveis pré-pandemia”, avisou o diretor da FGV Social, Marcelo Neri. “Se não tiver uma rede de proteção social mais ampla do que a do Bolsa Família depois do auxílio emergencial, o governo vai perder o apoio político que ganhou entre as famílias do Nordeste. Esta também é uma conta de popularidade. E, como parece que Bolsonaro já pensa de forma cristalina na reeleição de 2022, ele vai querer essa expansão”, avaliou o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Joilson Cabral.

Um auxílio bem mais robusto

O governo de Jair Bolsonaro não precisa, contudo, criar um programa social para resolver todos os impasses. Segundo especialistas, tudo isso pode ser feito por meio da atualização e da ampliação do Bolsa Família. E alguns parlamentares dizem que já há projetos tramitando no Congresso Nacional com esse intuito, o que poderia acelerar a discussão e garantir que o Brasil terá uma rede de proteção social mais robusta já no início do próximo ano.

“A base do programa de renda básica permanente é o Bolsa Família, que já tem um modelo de gestão reconhecido. Então, podemos usar o conhecimento já instalado e fazer ajustes para ampliar o programa”, analisou o integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), José Antônio Moroni. Ele lembrou, inclusive, que a ideia do governo era pegar o Bolsa Família, aumentar o valor e o alcance e batizar de Renda Brasil por conta de uma questão política, para assumir a paternidade do maior programa social do Brasil.

Estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) calcula que cada real gasto adicionalmente no Bolsa Família chega a ser 673% mais efetivo na missão de reduzir a pobreza no país do que a injeção desse real em programas como o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Isso porque a maior parte dos beneficiários do Bolsa Família está na mais baixa faixa de renda do Brasil e porque o benefício é pago, inclusive, a crianças de 0 a 4 anos, que sofrem com uma taxa de pobreza de 20% no Brasil.

Levantamento realizado no ano passado, nos 15 anos do Bolsa Família, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) confirmou que “o Bolsa Família é a transferência pública que mais alcança a população pobre no Brasil, uma vez que cerca de 70% dos recursos do programa alcançaram os 20% mais pobres, reduzindo a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%”. O Ipea concluiu, então, que o programa foi responsável por 10% da redução da desigualdade ocorrida no Brasil entre 2001 e 2015.

Enquanto o governo tenta se acertar sobre o futuro dos programas sociais, portanto, parlamentares de oposição, que vinham defendendo a criação da renda básica universal nos últimos meses, articulam-se para tirar da gaveta um projeto apresentado no ano passado com o intuito de modernizar o Bolsa Família. É o projeto de lei nº 6.072, que já teve até uma comissão especial instalada antes da pandemia de covid-19, e que foi apresentado no lançamento da Agenda Social da Câmara dos Deputados — agenda que foi articulada por deputados como Tabata Amaral (PDT-SP), mas teve o apoio do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e de diversos líderes partidários.

Custo financeiro

Criar um programa social ou turbinar o Bolsa Família, contudo, também terá um custo fiscal significativo. Por isso, é possível cair no mesmo impasse que levou à suspensão das discussões sobre o Renda Brasil no governo. Afinal, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do próximo ano reserva R$ 34,8 bilhões para o atendimento de 15,2 milhões de famílias no Bolsa Família. Porém, a ampliação da rede de assistência social pode precisar de, pelo menos, mais R$ 20 bilhões, segundo cálculos do governo, que, no entanto, não tem margem para remanejar esses recursos do Orçamento de 2021.

“O PLOA 2021 foi apresentado com as despesas já no limite, roçando o teto”, lembrou o secretário-geral e fundador da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco. Ele ressaltou, ainda, que a maior parte das despesas é obrigatória, lembrando que mesmo as despesas discricionárias já estão em um nível preocupante.

Foi por conta disso que a equipe econômica passou as últimas semanas tentando encontrar uma forma de remanejar recursos para o Renda Brasil no Orçamento. E, para isso, chegou a avaliar o congelamento das aposentadorias e a revisão do abono salarial — propostas rechaçadas por Bolsonaro por conta do risco político de tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. E é por conta disso que, apesar do desgaste criado por essas propostas, o senador Marcio Bittar e lideranças do governo no Congresso continuam avaliando uma forma de bancar um novo programa social com ajuda dos auxiliares de Guedes.

“Estamos em um desfiladeiro com dois abismos. De um lado, tem o risco de cair em um abismo de pobreza. Do outro, o risco de cair num precipício de gastança que vai agravar a situação fiscal do país. Então, é preciso encontrar um caminho que concilie a situação de restrição fiscal com as necessidades sociais da população”, afirmou o diretor da FGV Social, Marcelo Neri, dizendo que qualquer solução precisa ser sustentável no longo prazo.

Especialistas e integrantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, contudo, dizem que é possível bancar a ampliação da rede de proteção social por meio de medidas como a revisão dos fundos públicos, que hoje estão empoçados, ou por meio da taxação dos mais riscos.

“As amarras orçamentárias existem por conta das limitações fiscais, como o teto de gastos. Mas, há medidas que podem ser implementadas para financiar um programa de renda básica sem tirar dos mais pobres. Você pode, por exemplo, fazer uma reforma tributária progressiva para que quem ganha mais pague mais imposto. Medidas como a taxação de dividendos, a taxação de heranças e a taxação de grandes fortunas seriam uma alternativa e são medidas que existem em outros países capitalistas, como os Estados Unidos, a Alemanha e a França”, destacou Moroni, que, no entanto, não vê muita disposição do governo em avançar com estes assuntos.


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