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Identidade dos mineiros revela do conservador ao rebelde em 300 anos

Características que definiram a personalidade do povo de Minas refletem diversidade, inventividade e o poder de mesclar os extremos


15/01/2021 04:00 - atualizado 15/01/2021 08:09

Cantor, ator e multi-instrumentista, Maurício Tizumba destaca diferencial em todas as áreas da cultura(foto: Belisario Tonsich/divulgação)
Cantor, ator e multi-instrumentista, Maurício Tizumba destaca diferencial em todas as áreas da cultura (foto: Belisario Tonsich/divulgação)
Tradicional e revolucionário, conservador e rebelde, hospitaleiro e desconfiado. Esses são todos adjetivos usados para responder à pergunta “Quem é o mineiro?”. Dependendo da época e do contexto, essa identidade regional muda, mas sem perder a carga de ingredientes que foram incorporadas pelas pessoas ao longo dos 300 anos de Minas Gerais. Ser mineiro significa também ter destaque na gastronomia, na arte, na ciência, no empreendedorismo e em várias outras áreas da vida do país, com uma diversidade digna de comemoração no aniversário de três séculos.

 

Definir a mineiridade, ou uma identidade regional do mineiro, como um conjunto de características fixas que fazem o povo ser o que ele é, seria um erro, segundo Walderez Ramalho, doutorando em história pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Ele entende que essa identidade é o que se fala do mineiro, o que muda constantemente. “Os discursos são tão antigos quanto a capitania de Minas Gerais. E eles não passam disso, discursos”, explica. Em sua pesquisa, Ramalho chegou à conclusão de que esses discursos estão historicamente ligados a interesses políticos.

 

Exemplo é um documento enviado por dom Pedro de Almeida e Portugal, o conde de Assumar, ao rei de Portugal, em 1720. “O conde tenta justificar as medidas severas tomadas depois da revolta de Felipe dos Santos. Ele atribui uma série de características aos mineiros: um povo muito rebelde e muito insubmisso", conta Ramalho. Segundo ele, essa visão tem base no lema da bandeira do estado, “Liberdade ainda que tardia”, por exemplo.

 

Por outro lado, o historiador aponta que políticos conservadores criaram uma identidade pacífica do mineiro. “A ideia de que o mineiro é disposto à ordem, é hospitaleiro e pacífico”, descreve. “Quando a gente se depara com os usos da mineiridade, temos que nos perguntar quem é que está falando. A meu ver, essa atenção para interpretar esses discursos é relevante para evitar que as tradições não sejam apropriadas e manipuladas para fins políticos”, argumenta o historiador.

 

Bruno Falci com o filho Gabriel, da quinta geração da família que administra a Casa Falci(foto: Arquivo pessoal)
Bruno Falci com o filho Gabriel, da quinta geração da família que administra a Casa Falci (foto: Arquivo pessoal)

 

“A nossa maior sofisticação está na simplicidade das coisas”, afirma o chef Flávio Trombino, dono do Restaurante Xapuri, em Belo Horizonte. Ele acredita que a hospitalidade do mineiro e a tradição de saber fazer e receber se reflete na cultura de Minas Gerais e na sua gastronomia. “Os 300 anos são um momento importante para lembrar da importância de preservar o nosso patrimônio gastronômico, o queijo canastra, o pastel de angu. Eu me considero um guardião desse patrimônio”, diz o chef.

 

Além da arte de cozinhar, Trombino se dedica a pesquisar e documentar a história da gastronomia mineira e a cultura alimentar do estado. Há oito anos, desde que assumiu o restaurante, ele tem viajado e estudado essas manifestações. Pretende lançar um livro e um documentário. “Eu me deparei com a necessidade de me aprofundar no tema”, justifica. Ao lado desse projeto pessoal, Trombino tem orgulho de participar de iniciativas de divulgação dos produtos da Serra da Canastra, das jabuticabas de Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e das cachaças mineiras, entre outros itens típicos.

 

Esse trabalho dá continuidade ao da mãe – Nelsa Trombino, que fundou o Xapuri –, de divulgar a culinária mineira no Brasil e no mundo, segundo o chef. “A gastronomia na minha vida vem de berço. Tanto de parte de pai, família de fazendeiros, como de parte de mãe, italianos”, conta Trombino. “Nessas culturas, comer é muito mais que suprir as necessidades do corpo, é o momento de conversa, reunião, é um momento sagrado”, afirma, inspirado, ainda, na cozinheira que é considerada a embaixadora da cozinha mineira, Dona Lucinha, falecida em 2019.

 

Mistura

 

Na cultura, um dos artistas mais reconhecidos como embaixador de Minas é o ator, compositor, cantor, multi-instrumentista, diretor musical e capitão de congado Maurício Tizumba. “Minas são várias e as maneiras também. É barroco e sertanejo ao mesmo tempo, conservador e moderno, no Sagarana de Guimarães Rosa ou na pedra no caminho de Carlos Drummond de Andrade”, diz, ao ser questionado sobre o que caracteriza o mineiro.

 

Tizumba já atuou em 28 espetáculos, participou da criação da Companhia Burlantins, faz trabalhos no cinema e na TV. Como músico, excursionou pela América do Norte e Europa, e tem Sá Rainha e Maurice a Paris como composições mais conhecidas. Ele diz que não escolheu a arte, já que nasceu nos terreiros de candomblé, umbanda e congado. “Acredito que minha contribuição é continuar o legado que minha mãe e minha avó, benzedeira de mão cheia, deixaram”, conta. “Trilhar pelo caminho da arte negra é muito mais árduo, porém cada trabalho de sucesso é prazer dobrado e uma alegria sem fim”, observa. Ao falar sobre a cultura de Minas, Tizumba vê “uma grande mistura na música, na culinária, na dança, teatro, cinema, poesia e tudo mais que vem do povo, o poder de fazer uma cultura diferenciada.”

 

Sem holofotes

 

Ao fazer ciência, o mineiro trabalha discretamente, sem procurar holofotes, mas contribui muito para o desenvolvimento científico do país. Essa é a visão do professor Flávio Guimarães da Fonseca, do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. O pesquisador, que assumiu recentemente a presidência da Sociedade Brasileira de Virologia (SBI), afirma que a ciência produzida em Minas Gerais é forte e de ponta, mesmo sem contar com os recursos necessários para isso.

 

“Desde criança, gostava de livro de bicho”, relembra Fonseca ao falar da aptidão para a biologia. O primeiro estágio foi realizado na área de ornitologia, o estudo das aves, mas logo apareceu outra oportunidade na área da microbiologia. “Desenvolvi uma paixão muito grande”, conta. O sentimento o levou a se dedicar à área pelo resto da carreira. Depois de formado, Fonseca fez pós-graduação com ênfase em virologia, pós-doutorado em parte no Instituto Nacional de Saúde, nos EUA, trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), até começar a lecionar na UFMG.

 

O pesquisador estudou o vírus que causa a varíola, a única doença erradicada pela humanidade, e trabalhou no desenvolvimento de uma vacina contra a dengue. Por causa da expertise nessa área, integra o CT-Vacinas, centro de pesquisa de imunizantes da UFMG, e o comitê de enfrentamento ao coronavírus da universidade.

 

Empreender

 

Nos negócios, o empresário mineiro tem o costume de lidar apenas com quem já conhece. A opinião é do responsável por um dos comércios mais antigos de Belo Horizonte, a Casa Falci, fundada em 1908, de materiais de construção. “O mineiro é muito fechado, conservador. A gente prefere fazer negócio com pessoas indicadas. Não é sem saber de quem ele é filho, de onde ele veio. O mineiro leva muito a sério essa parte relacional”, afirma o empresário Bruno Falci.

 

O bisavô de Bruno, o italiano Aleixo Falci, fundou a Casa Falci no Rio de Janeiro, e depois  transferiu a empresa para a então recém-inaugurada capital de Minas Gerais. Bruno é o segundo mais novo dos 10 filhos do neto de Aleixo, Renato. “Na cultura italiana, quem manda é o homem primogênito. Sempre tive essa veia de empreendedor, mas tinha quase certeza de que não seria na Casa Falci, porque meus irmãos tocavam a empresa”, conta. Porém, em 1990, ele e um irmão compraram o controle acionário da empresa do pai e dos outros irmãos, e em 1993 Bruno comprou a loja integralmente. “É um amor que você acaba tomando por ela, uma tradição. É o nome da empresa e o nome da família ao mesmo tempo”, afirma. 


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