Ele está sempre entre nós, no bom-dia acompanhado de café quentinho; na hora do lanche, recheando o sanduíche com fatias de lombo de porco; e, à noite, na bandeja que sai do forno e traz no ar as tradições das Gerais. Mais típico do que o pão de queij o, só mesmo o jeito mineiro de falar uai. No período de pandemia, a quitanda está mais presente do que se imaginaria na mesa das famílias ou de grupo limitadíssimo de amigos, tornando o isolamento menos amargo.
Para preservar receitas que atravessam gerações, e não perder o pique para o coronovírus, empreendedores do setor capricham no produto, criam novidades para atiçar o paladar do consumidor, apostando na intimidade dos mineiros e na admiração dos brasileiros pelo alimento. Nesta segunda reportagem da série “Reinvenção das nossas tradições”, que o Estado de Minas publica desde ontem, fabricantes do pão de queijo, um dos produtos mais identificados com a cultura e a gastronomia de Minas, contam como estão enfrentanto os efeitos da pandemia de COVID-19 nos negócios.
Maior do país em volume de produção, a empresa Luza, fabricante do pão de queijo Maricota, cresceu 33% em 2020 impulsionada pela venda nos supermercados, já que muitos postos de venda, a exemplo de cafeterias, lanchonetes e lojas de shopping, fecharam as portas. O sócio e diretor comercial Ronaldo Evelande diz que o período tem sido positivo para os negócios, a despeito da crise sanitária. “Antes da pandemia, tínhamos 335 funcionários. Hoje são 450”, afirma.
Com sede em Luz, no Centro-Oeste de Minas Gerais, e fabricando 2 mil toneladas/mês de pão de queijo, broinhas, salgadinhos, lasanhas e outros alimentos, a Maricota está há 29 anos no mercado. A empresa surgiu pelas mãos da mãe de Ronaldo, Maria Dirce, falecida há um mês, aos 81 anos. O nome homenageia a avó do diretor comercial e também as prendadas cozinheiras da região carinhosamente apelidadas de “maricota”.
Confiante no futuro, Ronaldo Evelande lembra que a companhia começou num galpão de 54 metros quadrados e hoje ocupa área de 10 mil metros. “Acreditamos no futuro com planejamento e trabalho. Não paramos durante a pandemia”, afirma. Com foco no varejo e três marcas próprias , a Luza fabrica para terceiros, num total de 54 marcas no país, e exporta para Estados Unidos e Canadá.
Energia renovada
Em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o diretor da fábrica de pão de queijo Seu Ninico, Guilherme Lima, conta que a empresa sentiu o impacto da crise quando os shoppings fecharam e, junto com eles, cafeterias, lanchonetes, bufês e outros pontos de venda. Mas ele garante que não esmoreceu nem deixou a massa desandar. Os supermercados continuaram abertos e comercializando o produto existente há 11 anos e que traz o apelido do avô de Guilherme, Antônio da Mota Moreira, o Seu Ninico, que completaria o centenário em abril.
O momento é de “orgulho” nas vendas, expansão no negócio e oferta de novos produtos. “A receita do nosso pão de queijo é de família, temos o objetivo de manter sempre a qualidade. Neste momento, fortalecemos a energia de renovação, tanto que não demitimos nenhum dos 80 funcionários, estamos até contratando pessoal”, informa Guilherme Lima. Para garantir a qualidade do produto, ele revela que houve aumento no preço devido à alta nos custos dos insumos (leite, ovos, óleo de soja e outros).
A tradicional quitanda, a exemplo do biscoito de queijo da marca Seu Ninico, ultrapassou as divisas de Minas e caiu no gosto de outros brasileiros. Tendo como destino praças em estados das regiões Sudeste e Sul do país – Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul –, o empresário aproveitou o período de pandemia para pesquisar e preparar o lançamento de produtos. Assim, estão chegando ao consumidor as novidades pão de queijo zero lactose e também com três diferentes tipos de queijo.
Aconchego Com tradição de 25 anos, a fábrica Mercês, localizada no Bairro Caiçaras, na Região Noroeste de BH, está nas mãos, há um ano, da belo-horizontina Sibele Vieira. “Estamos em tempo de revitalização da parte física da empresa, embora com o propósito de manter o aconchego que o pão de queijo traz às famílias. Ele traduz bem o jeito mineiro, e queremos valorizar a cultura, trazer, junto com o produto, o clima das fazendas do interior”, afirma Sibele.
Com 16 funcionários e produção diária de 2,7 mil quilos de pão de queijo, biscoito de queijo e biscoitinhos nas linhas gourmet e prime, a Mercês tem características que evocam a história saborosa das Gerais. “Procuramos o modo bem artesanal, tanto que nosso pão de queijo é feito ‘escaldado’, algo bem difícil de se encontrar atualmente. Esse é nosso diferencial”, conta Sibele.
A capital do polvilho e as praias cariocas
Em época de pandemia, surge uma pergunta inusitada: há relação entre o tradicional plantio de mandioca no interior de Minas e o merecido lazer numa praia ensolarada do Rio de Janeiro? À primeira vista, a pergunta pode parecer sem nexo, mas, em segundos, vem uma resposta interessante: sim. É que o polvilho azedo derivado da mandioca cultivada em Conceição dos Ouros, no Sul de Minas, serve de base para o famoso biscoito Globo, que faz a festa à beira-mar carioca. “Então, se as praias do Rio fecham, como ocorreu durante a pandemia, os polvilheiros, como são chamados os industriais do setor, são afetados diretamente e têm perdas financeiras”, explica o presidente da Associação dos Produtores Rurais e Agroindústria de Conceição dos Ouros, Ocimar Pereira de Carvalho.
Componente do mineiríssimo pão de queijo, o polvilho azedo transformou Conceição dos Ouros em capital do produto, pois é enviado também para São Paulo. “Tivemos redução de cerca de 30% na produção, mas as indústrias estavam com estoques. A questão não foi apenas a pandemia: os preços da matéria-prima caíram muito, ficaram abaixo do valor de mercado, então a mandioca deixou de ser plantada. Além disso, com a seca em áreas de São Paulo e Paraná, o pessoal de lá veio comprar aqui e levou quase tudo. Mas, agora, estamos no pico da safra”, conta o presidente da associação que reúne 30 polvilheiros. Como o comércio é uma ciranda, faz sentido a lógica do polvilheiro: se há perda no consumo na praia carioca, toda a cadeia econômica é afetada. (GW)
FESTA VIRTUAL
Em Conceição dos Ouros, no Sul de Minas, a Festa do Polvilho será realizada de 3 a 8 de agosto com o Festival de pratos típicos de mandioca de polvilho, reunindo várias receitas. Um dos destaques fica por conta da competição usando o ingrediente típico da região. Devido à pandemia, a programação foi organizada e ocorrerá no modo virtual.
Alquimia da era colonial
A história do pão de queijo atravessa os tempos guiada pela nobreza da arte culinária mineira, pelo sabor dos produtos caseiros e pelas mãos que se empenham em preservar a tradição. Dizem os estudiosos que essa história começou no século 18 e início de 19, época de declínio da extração de ouro e de crescimento da agropecuária e das fazendas de gado leiteiro. O queijo, que se tornou patrimônio nacional, ganhou produção em larga escala e serve de base para receitas doces e salgadas.
Cheias de ideias, as espertas cozinheiras se valeram, então, do biscoito de polvilho, muito comum na gastronomia colonial, e adicionaram o novo ingrediente, criando nessa alquimia o produto que agrada a todo mundo.
Com o passar do tempo, cada quitandeira inventou seu próprio modo de preparo, com dezenas de variações sobre o tema – do que ninguém reclama, claro. Mais curioso ainda é que, de tão mineiro, o pão de queijo ganhou o status político. No período em que Itamar Franco (1930-2011) ocupou a Presidência da República (1992-1994), depois do impeachment de Fernando Collor de Mello, o grupo mineiro mais próximo ao novo chefe da nação ficou conhecido como “república do pão de queijo”.