O retorno de poucas tradições foi tão aguardado na Belo Horizonte conhecida como a capital nacional dos bares quanto o da boemia. Fato inedito em um ano e quatro meses de pandemia da COVID-19, a liberação do funcionamento das casas, incluindo os restaurantes, com a venda de bebidas alcoólicas até às 23h diminuiu a restrições para os boêmios, mas quem viveu as madrugadas anteriores à crise sanitária não se conforma com a sucessão de portas fechadas. O setor trabalha, agora, pela recuperação, amparada na diversidade e qualidade do serviço associada aos costume da população e à fama da gastronomia mineira.
Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de Minas Gerais (Abrasel-MG), 3,5 mil estabelecimentos encerraram as atividades em BH desde março de 2020, ou seja, 29% dos empreendimentos, ameaçando o título associado aos hábitos e à famosa gastronomia que caracterizam os dias e noites da capital. A despeito de tamanha turbulência, a entidade avalia que BH não corre o risco de perder o trono da boemia e demonstra certo otimismo para o segundo semestre.
As perspectivas que o presidente da Abrasel-MG, Matheus Daniel, vislumbra nos próximos meses são positivas. Ele estima que, nesta etapa de reabertura do setor em BH, as empresas devem atingir o patamar de faturamento de 2019, o que deve frear a onda de falências. “No início de junho fui convidado para a inauguração de um bar em BH erguido com investimentos de mais de R$ 1 milhão. Aos poucos, as coisas vão melhorando”, comemora.
O título de BH surgiu em 2013, quando um estudo divulgado pelo Ministério do Turismo apontou que o município oferecia um bar para cada conjunto de 170 habitantes – até então, a maior concentração do Brasil. “De maneira alguma a cidade perdeu esse título, porque o conquistamos também pela diversidade de bares que temos, pela qualidade dos nossos estabelecimentos, além da inventividade da nossa gastronomia. Além disso, precisamos nos lembrar de que a pandemia não afetou apenas o setor gastronômico de Belo Horizonte, é um fenômeno global. Todo mundo sofreu perdas”, avalia.
O percentual da quebradeira é superior ao encontrado nas duas maiores capitais do país. Em São Paulo, a Abrasel-SP estima que 21,82% empresas tenham fechado nos últimos 16 meses. No Rio, o sindicato estadual das empresas calcula que 25% dos CNPJs foram baixados no mesmo período. A recuperação do empresariado deve levar ao menos uma década.
Entre as 6 maiores capitais, BH é a terceira que mais fechou botecos e restaurantes. As primeiras da lista são Salvador (31%) e Fortaleza (30%). Rio de Janeiro (25%), São Paulo (21%) e Brasília (20%) completam a lista. Os dados são da Abrasel e do Sindicato Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro (SindRio).
A média nacional da quebradeira é de 30%, isto é, 300 mil, dos cerca de 1 milhão de negócios voltados à alimentação fora do lar em todo o Brasil foram à falência ao longo de 2020. A crise em BH também resultou na dispensa de 30 mil dos 72 mil trabalhadores do setor, e queda vertiginosa no faturamento. Nos períodos de maior restrição, quando as empresas podiam operar apenas com o serviço de delivery, as receitas foram reduzidas em 70%.
Finanças Em junho deste ano, quando a cidade já experimentava estágio razoável de reabertura, a saúde financeira dos negócios se mostrou frágil. Outro levantamento da Abrasel, realizado junto a 288 empreendimentos de BH, mostrou que 26% deles tiveram problemas para pagar integralmente os salários do mês, com vencimento no quinto dia útil. O índice melhorou em relação ao último estudo, feito em maio, no qual foram constatados 58% de inadimplência.
Após as baixas da pandemia, BH passou a apresentar a proporção de um bar para 320 habitantes, índice atualmente superado por cidades como São Paulo, com um estabelecimento por grupo de 286 pessoas, e Brasília, com 248 habitantes por boteco. Matheus Daniel pondera que a coroa de BH é sustentada por outros fatores além do número de empreendimentos gastronômicos.
Insegurança Ao falarem das perspectivas que veem, empreendedores do setor ouvidos pelo Estado de Minas assumem um tom de desamparo e insegurança, já que a pandemia lhes impôs dívidas, além de transformar o mercado de forma disruptiva. Rodrigo Cunha, proprietário do Stonehenge Rock Bar, fechou seu estabelecimento em abril último, após 21 anos de atividades. Reduto de mineiros fãs de rock n’ roll, o espaço ficava no Barro Preto, na Região Central. Ele conta que, a princípio, manteve a casa fechada e abriu uma hamburgueria para tentar manter os compromissos financeiros, mas a estratégia deu certo por pouco tempo.
“Não é viável. No meu espaço, cabem 430 pessoas. Para seguir os protocolos, eu teria que atender 70. Essa dinâmica não cobre os custos de operação. Além disso, eu não me sinto seguro. Meus funcionários têm comorbidades, é muito arriscado. Quem quiser voltar a funcionar que volte, eu não julgo, mas eu não vou. Para mim, é como sair para a guerra de peito aberto para tomar um tiro. No atual caos em que vivemos, esta é a situação”, comenta Cunha, que dispensou cerca de 30 empregados, entre garçons, cozinheiros, seguranças, bartenders e caixas.
Maki Fangawa, que comandou por dois anos o boteco japonês Dona Tomoko Izakaya, diz que ainda tem esperança de retornar ao setor gastronômico. O empresário reconhece o desafio: terá de montar outro bar, possivelmente em outro ponto da cidade, já que entregou o imóvel onde operava, no Sion, Região Centro-Sul da capital.
“Encerrei em julho do ano passado, assim que percebi que, caso continuasse funcionando, acumularia dívidas. Mas quero sim abrir outro bar. Agora, no entanto, não é o momento. Vou aguardar até que a vacinação avance um pouco mais e a situação do mercado se estabilize”, projeta.
Abrasel pede reparação em todo o país
A lucratividade do negócio dos bares e restaurantes tende a se ressentir por bom tempo, de acordo com Matheus Daniel, presidente da Abrasel-MG. “A grande maioria (das empresas) está endividada. São débitos que não se pagam em menos de cinco anos. O custo dos insumos está altíssimo. E a recuperação do patrimônio perdido. Isso leva pelo menos 10 anos (para recuperação)”, diz.
Em meados de junho, a Abrasel acionou a Justiça para responsabilizar o poder público pela reabilitação dos negócios, o que a entidade chama de reparação financeira. A associação move ações contra todos os estados da federação, além 270 municípios, exigindo benefícios como isenção de impostos como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) pelos próximos cinco anos.
“Tudo o que sofremos na pandemia foi consequência direta de decisões tomadas pelo Executivo municipal e estadual. Ninguém aqui quer discutir se eles fizeram escolhas certas ou erradas, mas é dever do poder público nos oferecer alguma reparação. O que recebemos até o momento dos prefeitos e governadores não basta. Grosso modo, eles nos ofereceram parcelamento e postergação de dívidas. Sabemos que não voltaremos a operar como antes por um bom tempo. Então, a conta não fecha”, analisa o presidente da Abrasel-MG.
Dono do extinto Bitaca da Leste, misto de bar e vendinha do interior que funcionou até setembro de 2020 no Bairro Santa Tereza, Região Leste de BH, Luiz Mairink também não faz planos de voltar ao mercado. Ele pondera que o formato de funcionamento definido PBH favorece ainda menos o retorno de bares pequenos como o dele.
“Era um lugar pequeno, intimista, de 30 metros quadrados. Não tínhamos o capital de giro de grandes empresários, nem grandes reservas financeiras. Para se sustentar, a casa precisava estar sempre cheia. Além disso, nesse espaço reduzido, com apenas um banheiro disponível, eu não teria como cumprir os protocolos”, afirma Mayrink. No início da pandemia, ele tentou operar no delivery, sem sucesso. (CE)
Ranking da quebradeira
Retração nas 6 maiores metrópoles e a concentração do negócio
» SALVADOR (31%)
» Bares fechados: 4 mil
» Restaram: 8.511
» 1 bar a cada 339 habitantes
» FORTALEZA (30%)
» Bares fechados: 1,8 mil
» Restaram: 4,2 mil
» 1 bar a cada 639 habitantes
» BELO HORIZONTE (29%)
» Bares fechados: 3,5 mil
» Restaram: 8,5 mil
» 1 bar a cada 320 habitantes
» RIO DE JANEIRO (25%)
» Bares fechados: 2.750
» Restaram: 8,25 mil
» 1 bar a cada 817 habitanttes
» SÃO PAULO (21,82%)
» Bares fechados: 12 mil
» Restaram: 43 mil
» 1 bar a caa 286 habitantes