Resende Costa – Os novos tempos não conseguem apagar, nem mesmo desbotar, uma história de mais de 200 anos tecida com a força do trabalho, harmonia de cores e ardente paixão. Em Resende Costa, na região mineira conhecida como Campo das Vertentes, a tecelagem artesanal representa o esteio da economia, – ao lado da agropecuária –, parecendo correr no sangue da população de 11,5 mil habitantes. Pulsa, impulsiona, garante emprego e renda.
Para onde se olha, lá está um tear de madeira no qual as mãos ágeis transformam os fios em tapetes de diversos tamanhos e formas, colchas, almofadas e outros produtos que encantam pela composição dos tons, beleza, maciez da textura. Se a pandemia assustou no início, não tira mais o sossego dos artesãos agora, cheios de encomendas e de planos para atender o consumidor.
Nesta segunda reportagem da série “Reinvenção das nossas tradições”, que o Estado de Minas publica desde ontem, artesãos e lojistas de Resende Costa revelam como a atividade se renovou para enfrentar os efeitos da crise sanitária. As estratégias que levaram à recuperação das vendas são muitas: comércio on-line, novos clientes conquistados pelos atacadistas, revendas organizadas como alternativa para quem ficou sem trabalho ou quis aumentar os rendimentos e o efeito das mudanças na decoração doméstica com o isolamento social que impôs o “fique em casa”.
Com cerca de 80 lojas, o município distante 180 quilômetros de Belo Horizonte se tornou, este ano, Capital Mineira do Artesanato Têxtil, título conferido pelo governo estadual após aprovação na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Para orgulho dos moradores, a atividade foi, antes, registrada como bem imaterial pelo Conselho Municipal de Patrimônio e Cultura, informa o secretário municipal de Turismo, Artesanato e Cultura, André Eustáquio Melo de Oliveira. Ele diz que, desde a década de 1990, após longa estagnação, o setor se firmou e não parou de crescer.
Gerações
“Em cada casa, há sempre alguém trabalhando no tear, uma atividade que atravessa os séculos e passa de geração a geração”, conta o artesão Luís Cláudio dos Reis, dono de uma peça-síntese dessa trajetória. Trata-se de um centenário tear adquirido, há 20 anos, numa fazenda então em demolição na zona rural. “Comprei as peças e remontei esse que é dos mais antigos teares da cidade. Faz sucesso, já foi apresentado três vezes em BH em eventos relacionados ao patrimônio”, conta o artesão nascido e criado no município. “Aprendi a tecer com minha mãe, Abigail Vieira, e faço questão de usar o velho tear, pois funciona perfeitamente e tem história.”
De acordo com os levantamentos que deram origem à lei estadual 23.770/21 e a Resende Costa o título de Capital Estadual do Artesanato Têxtil, 70% da população economicamente ativa local atua no ramo têxtil, com retorno anual de R$ 6 milhões para o município. A maior parte da produção é vendida nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, responsáveis, na mão inversa, pelo maior número de visitantes.
Outra novidade para o artesanato de Resende Costa está na conquista recente do Selo de Indicação Geográfica concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Além de atestar a procedência dos produtos, o selo auxilia na valorização cultural e no fomento às atividades efetivamente artesanais e desenvolvimento do turismo. A certificação foi obtida a partir de iniciativa da Associação Empresarial e Turística de Resende Costa (Asseturc), com apoio técnico da Universidade Federal de São João del-Rei, sob a coordenação do pesquisador Bruno Diláscio, que escolheu o artesanato de Resende Costa como tema do seu mestrado.
Retorno ao trabalho
Um giro pela Avenida Alfredo Penido, apelidada de Avenida do Artesanato, dá a medida da grandeza desse esteio econômico no município integrante do circuito Trilha dos Inconfidentes da Estrada Real. Proprietária da loja Arte Q Faço, Andréia da Silva Resende Santos é conhecedora do ofício e dos negócios inicialmente assombrados, como os demais, pela pandemia.
“Os primeiros 40 dias, entre março e abril de 2020, foram de dificuldades. Hoje podemos dizer que não sentimos mais os efeitos da pandemia”, conta Andréia, que foi obrigada a dispensar quatro funcionários, mas depois os recontratou e abriu mais três vagas. Se os turistas e compradores se retrairam, o jeito era entrar no mundo digital pela porta das redes sociais. “Antes da pandemia, eu tinha apenas um celular, agora tenho quatro, pois há muitos pedidos. Se não for assim, não dou conta de atender todo mundo”, revela Andréia mostrando os smartphones.
Na loja atacadista, com 80% do estoque proveniente de Resende Costa e o restante dos municípios vizinhos de São João del-Rei e Prados, as prateleiras exibem dos tapetinhos de 40 centímetros por 60 cm de largura aos maiores, de 2 metros por 2,50m. “Tradicionalmente, o Rio de Janeiro é o maior comprador dos nossos produtos. O impressionante é que, nos últimos meses, temos sentido falta da matéria-prima, em especial os fios na cor laranja”, diz a comerciante.
“Bater tear”
No Bairro Várzea do Tijuco, próximo do Centro de Resende Costa, os pequenos estabelecimentos emitem o som ritmado da tecelagem artesanal. Usando, sem parar, os pés para movimentar as peças de madeira e as mãos no vaivém característico dos pentes que formam as tramas de fios e malhas, os artesãos “batem o tear” – termo muito próprio do ofício para traduzir o ato de tecer. Está perto do meio-dia, e um tecelão, compenetradíssimo no serviço, lembra, sem a menor saudade, do paradeiro de março do ano passado. “Agora está melhor, com certeza”, resume a situação.
Dono da loja Lages Artesanato, na Avenida Alfredo Penido, Edson Vander Mendonça Resende mantém tecelagem na Rua da Inconfidência Mineira. Diante da crise sanitária que aterrorizava o país de Norte a Sul a partir de março de 2020, ele interrompeu as atividades durante três meses, e, por consequência, houve prejuízos à cadeia produtiva. “Além do pessoal que trabalha nos teares comigo, há 30 pessoas envolvidas em várias etapas, como enrolar os novelos. Muitos passaram a viver do auxílio do governo federal”.
A maioria dos tecelões trabalha por produção, a exemplo de Divonei Rodrigues dos Reis, de 35 anos, na atividade desde os 11, e Expedito Silva Pinto, de 23. Perguntado se “bater tear” cansa muito as pernas, Divonei sorri e garante que já se acostumou, enquanto o colega de ofício se resume a dizer que “tecer é muito bom”.
Até chegar à etapa final de toda a produção, cujo ápice está em admirar uma colcha estendida sobre a cama, um tapete no banheiro ou a toalha de mesa, a tecelagem passa por vários processos. No seu estabelecimento da Rua da Inconfidência Mineira, Edson mostra uma das fases iniciais, que tem na urdideira sua peça de sustentação. Na estrutura de metal, quadrada, ele prepara os fios que serão levados ao tear.
Impressionante ver a agilidade do artesão, com movimentos sincronizados e rápidos para não perder o serviço. Edson puxa as linhas e as enrola nas barras da urdideira. Os movimentos lembram uma dança com apenas um bailarino ou um maestro de uma orquestra de único instrumento; resultado da soma de técnica, tarimba, e, claro, talento lapidado durante muitos anos.
Desafios dos tempos da família real
A história da tecelagem em Resende Costa remete aos colonizadores portugueses. Com as restrições impostas pela Coroa às manufaturas e à industrialização na colônia, o setor somente se desenvolveu depois da chegada de Dom João VI (1767-1826) ao Brasil, em 1808. A presença da família real e a maior liberdade econômica autorizada fizeram surgir fabriquetas de tecidos, que vendiam a outras localidades da Capitania de Minas e para o Rio de Janeiro, a capital da colônia a partir de 1763.
Segundo os pesquisadores, a expansão foi tamanha que Resende Costa produziu o linho que era mandado para Buenos Aires, na Argentina. Além das peças mais finas, houve crescimento de tecidos rústicos de algodão usados para fazer roupas de escravos e sacaria.
“Resende Costa nasceu no século 18 e se chamava Arraial de Nossa Senhora da Penha de França da Lage. Nos primórdios, era um ponto de parada de tropeiros que seguiam para Goiás, pelo antigo caminho da Picada de Goiás, ou para outras localidades, via Estrada Real. A localização entre os dois caminhos fez florescer o comércio”, conta o secretário municipal de Turismo, Artesanato e Cultura, André Eustáquio Melo de Oliveira.
INDICAÇÃO GEOGRÁFICA
8,1 mil
É a estimativa de habitantes de Resende Costa que atuam no ramo têxtil
R$ 6 milhões
É a renda anual gerada pela atividade no município