Um olho na agulha, outro na tela do computador, sem perder o fio da meada cultural que fortalece as tradições, estimula o trabalho e fez da tecnologia poderosa aliada para levar adiante a delicadeza do trabalho. Em tempos de pandemia, um grupo de bordadeiras de Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, cria nova dinâmica e se adapta às mudanças para manter, bem viva, a arte dos bordados. Das tramas dos tecidos às redes sociais, o caminho é percorrido com dedicação, muita garra e planejamento.
Se em Caeté, antiga Vila Nova da Rainha, as bordadeiras querem ver o ofício centenário reconhecido como patrimônio imaterial do município, em Barra Longa, na Zona da Mata do estado, o título enche a população de 5 mil habitantes de orgulho desde 2005. “Representa um resgate da nossa cultura”, diz Ana Maria Pereira, presidente da Associação Barra-longuense de Bordadeiras e Artesãos.
O local de venda e reuniões, na Casa das Artes, reabriu em março último e o grupo vislumbra o futuro. “Não perdemos a esperança. Estamos agora nas redes sociais, algo totalmente novo para nós, tanto que contratamos uma amiga para cuidar dessa área”, conta Ana Maria antes de arrematar: “Entendemos mesmo é de bordado”.
Nesta matéria, a terceira da série "Reinvenção das nossas tradições", que o Estado de Minas publica desde domingo, asrtesãs mostram que palavra e obra têm relevância para quem entende do riscado. “Bordado deve ser escrito com letra maiúscula e sempre visto como patrimônio imaterial, pois é a cultura do saber, do fazer”, ressalta Maria do Carmo Guimarães Pereira, fundadora e diretora do Maria Arte e Ofício, em Belo Horizonte, espaço de referência e de ensino da atividade que remonta, no país, aos tempos coloniais.
Em plena campanha para instalação do Memorial do Bordado, na capital, que será mantido pela Associação pela Proteção da Arte do Bordado (Apab), Maria do Carmo vai expor 9 mil peças, ao lado de moldes centenários, projeto que foi atropelado pela pandemia e terá sede no Bairro Cruzeiro, na Região Centro-Sul de BH. “Estamos catalogando peça por peça, e as informações vão alimentar um banco de dados”, adianta Maria do Carmo, que tem participado de lives para falar dos bordados.
Encontros Em Minas, os fios da cultura se entrelaçam e tecem a atividade de beleza, encantamento e força artesanal impressa em toalhas, bolsas, capas de almofada, panos de copa, enxoval completo e inúmeros outros produtos. É ver para curtir cada centímetro de criatividade e crer na reinvenção do ofício. “Da noite para o dia, tivemos que aprender a ‘mexer’ com a internet, com a plataforma Zoom, enfim, aprender as novas tecnologias”, conta, bem-humorada, a pedagoga aposentada e apaixonada pelo ofício dos bordados Lêda das Graças Costa Ferreira, de Caeté.
Dona de um ateliê e integrante da recém-criada Associação das Bordadeiras e Artesãos de Caeté – Historiarte, que reúne 12 mulheres, Lêda fala sobre o desafio e a reinvenção positiva em quase um ano e meio de pandemia: “Devido ao isolamento social, fomos obrigadas a manter os encontros pelo modo virtual, cada uma em sua casa. No início não foi fácil, mas nos acostumamos. Afinal, é fundamental trocar informações, acompanhar o risco dos bordados, dar palpites.”
Com o ateliê fechado desde março de 2020 e vendendo para quem bate na sua porta, Lêda sabe que, em certas situações, fazer do limão uma limonada se torna a melhor saída. E puxa daqui, espreme dali, o grupo de bordadeiras conseguiu progressos, embora com as dificuldades impostas pela quarentena. “Não vendemos, mas nos organizamos”, contou ela, ao lado das colegas de ofício Heloísa Helena Urias Pinto Cândido e Karina Aparecida Gomes – o trio se reuniu de forma especial no ateliê localizado na Avenida Dr. João Pinheiro, perto do Centro Histórico de Caeté.
Criada durante a pandemia, a associação presidida por Francisca Paulina Figueiredo Silva já tem garantido um espaço, cedido pela prefeitura local, para fazer suas reuniões, encontros e ministrar cursos tão logo seja possível. O orgulho atual da turma está na confecção de estandartes recriando manifestações culturais de Caeté, cujo primeiro núcleo populacional surgiu no fim do século 17. Concentrada diante do bastidor, Lêda borda atualmente um presépio que se une ao desenho, riscado por Heloísa Helena, de um casarão já demolido. Nele, dona Corina, mulher de seu Zezinho Dentista, montava o presépio e encantava as visitas. “Conseguimos uma foto antiga do sobrado. Veja aqui”, mostra a bordadeira na tela do celular a imagem em preto e branco do imponente imóvel desaparecido da paisagem.
Flores campestres
Entusiasmada, a bordadeira Heloísa Helena mostra a nova coleção inspirada em flores nativas da região, muitas delas encontradas ao longo dos caminhos da Serra da Piedade, na beira de chafarizes e outros cantos da cidade: cosmos, flor do guarujá e camará. “São plantas que nascem sem ser semeadas pela mão humana. As sementes são levadas pelo vento e as flores brotam. Essa é a essência da coleção: a espontaneidade da criação.”A variedade dos produtos e a delicadeza dos bordados livres enchem os olhos: do vaivém da linha sobre o linho e da agulha que mergulha no algodão brotam os pontos cheio, atrás e ajour, corrente, nó francês, matiz e outros. Do grupo, que reúne mulheres dos 23 aos 80 anos, a maioria na faixa dos 50, Karina Aparecida é das mais jovens, aprendeu a bordar com a mãe, Wanda Lima Cândida Gomes, e sentiu a dificuldade da perda de renda durante a pandemia.
“Fiz muitas máscaras e agora estou vendendo o artesanato pela internet, sempre confiante na associação para fortalecer o trabalho”, afirma. Os homens, se quiserem, serão bem-vindos, convidam as associadas, tanto que deixaram a palavra artesãos no nome para facilitar o ingresso da ala masculina.
Um estado criativo
As mãos talentosas puxam as linhas do tempo e da vida – nos tempos pré-pandêmicos, as bordadeiras de Caeté, na Grande Belo Horizonte, se reuniam para fazer seus trabalhos sem desprezar a companhia dos bolos, biscoitos e café bem quentinho e contar histórias. E não veem a hora de retomar as atividades presenciais com muito gosto.
Em outros cantos de Minas, a atividade ganha terreno nas casas ou em associações, com grupos reconhecidos em Turmalina, Berilo e Veredinha, no Vale do Jequitinhonha; Tiradentes, na Região do Campo das Vertentes, e Ipanema, no Vale do Rio Doce. A pesquisa mais recente, de 2014, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a atividade gera emprego e renda em 4.243 municípios do país ou 76% do total.
Com dedicados artesãos e artesãs em todos os estados, os bordados têm Sergipe como polo número um, seguindo, empatados, Minas Gerais e Goiás. Dos 853 municípios mineiros, 714 têm registros de desenvolvimento do bordado, representando 83,7% do estado. O artesanato da renda, em particular, está disseminado em 44 cidades de Minas, o que eleva essa média mineira a 88,9% dos municípios. No estudo anterior, de 2012, a atividade estava presente em 81,5% das cidades mineiras. (GW)
De Barra Longa para a passarela
Com 5 mil habitantes, Barra Longa, na Zona da Mata mineira, não tem estatística sobre o número de pessoas dedicadas aos bordados. “Toda casa tem um pessoa. Os homens também bordam, mas são mais tímidos. Acho que bordam escondidos”, brinca a presidente da Associação Barra-longuense de Bordadeiras e Artesão, Ana Maria Pereira. Com seu jeito bem mineiro, ela diz que a pandemia “deu um couro” em todo mundo, principalmente nos moradores de Barra Longa, na Bacia do Rio Doce, que ainda nem sequer se recuperaram da tragédia provocada em novembro de 2015 pelo rompimento da Barragem da Mina do Fundão, da Samarco, na localidade de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas. “Barra Longa ficou coberta de lama”, recorda-se.
Sem se deixar abater, as 20 integrantes da associação esbanjam criatividade e chamaram a atenção do estilista Ronaldo Fraga, que usou os bordados em desfile no São Paulo Fashion Week. “Foi muito bom, nos ajudou muito, deu visibilidade e fortaleceu nosso trabalho, que é diferenciado”. O ‘diferenciado” significa tradição e talento para mostrar a beleza dos bordados, que, conforme os estudos, começaram na região com duas famílias portuguesas vindas da Ilha da Madeira na época da colonização.
A exemplo de Ana Maria, Rosângela Maria Trindade, de 65, conhecida como Zanja, tem paixão pelo que faz. Funcionária pública aposentada, viúva, com três filhos e cinco netos, a bordadeira considera o ofício uma terapia. “Além de gostoso de fazer, ajuda na renda de muitas famílias”, revela Rosângela, que aprendeu a trabalhar com vizinhas e amigas, ainda muito jovem, e se esmera no pontos richilieu e matiz. Para complementar, as bordeiras enfeitam os trabalhos com renda e crochê. (GW)