Solo fértil para o florescimento do artesanato, o Vale do Jequitinhonha tem no barro a matéria-prima que une gerações, sustenta famílias e transforma vidas com o poder da criatividade. Da força da terra ao talento das mãos, ele está presente em bonecas, panelas, vasos, borboletas e flores, de formas e cores variadas, realçando uma atividade que se tornou, em 2018, patrimônio imaterial de Minas, com o registro de Saberes, Ofício e Expressões Artísticas sob proteção do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).
“Enfrentamos a pandemia com esperança, pois nossa arte continua cada vez mais viva”, diz a presidente da Rede de Artesanato do Vale do Jequitinhonha, Maria do Carmo Barbosa Sousa, moradora do distrito de Campo Buritis, em Turmalina. A entidade reúne 40 associações distribuídas por 71 municípios da região. “Estamos fazendo um levantamento para saber o número certo de pessoas dedicadas à atividade, e acreditamos em número superior a 2 mil pessoas”, estima Maria do Carmo.
Nas mãos das famílias, passando de geração a geração e já com muitos artesãos idosos, a arte em barro se desenvolve em Turmalina, Minas Novas, Ponto dos Volantes, Caraí, Itinga, Araçuaí e outras localidades urbanas e rurais. Durante os piores momentos do período dominado pelo novo coronavírus, surgiu a oportunidade de criação de peças para duas redes varejistas de alcance nacional, a Tok&Stok e Camicado. “Não participou todo mundo, mas ajudou bastante”, conta Maria do Carmo.
A visibilidade maior surgiu com o reality show “Big brother Brasil”, que usou, no cenário da casa, objetos decorativos feitos por artesãos do Jequitinhonha. “Repercutiu muito mesmo”, afirma Maria do Carmo. As borboletas de barro usadas no programa foram criadas por Roberta Mária, de 28 anos. O esforço de renovação para preservar essa arte, enfrentando os efeitos da pandemia na produção e comercialização, é o tema da quarta matéria da série de reportagens “Reinvenção das nossas tradições”, que o Estado de Minas publica desde domingo.
Ao lado da cerâmica do Jequitinhonha, segmento mais conhecido nacionalmente, há outras peças de valor artístico e econômico. Estão lá as fibras naturais do cipó e da palha de bananeira, a tecelagem de algodão, o ferro, o couro e a madeira. “Temos uma história bonita, de evolução. Quando comecei nesse ofício, três décadas atrás, me recordo de que as cores eram muito pobres. Hoje, há uma variedade incalculável de tons na cerâmica derivada de pesquisas que aprimoraram e deram mais beleza às peças produzidas”, conta a artesã e dirigente da rede de artesãos associados.
Pioneira Um nome célebre na história da arte em barro da região é o de Izabel Mendes da Cunha, falecida aos 90 anos, em 2014. Morava no distrito de Santana do Araçuaí, em Ponto dos Volantes, a 11 quilômetros da rodovia Rio-Bahia, e deixou quatro filhos, três deles artesãos. As bonecas feitas por dona Izabel ganharam fama e o mundo, tanto que, em 2004, a artesã foi premiada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
“Minha avó fazia panelas e outras peças utilitárias, mas ‘mãinha’ sempre gostou, desde criança, de fazer bonecas. Todos nós fomos criados com o barro, e com ele também criamos nossos filhos”, revela, com ternura, Glória Maria Andrade, de 64, moradora de Santana do Araçuaí, comunidade que reúne outros artesãos. Andréia, de 40, filha de Glória Maria, estudou artes plásticas na Escola Guignard, em Belo Horizonte, e seguiu os passos da avó. “Ela tem dois filhos, Lucas, de 9, e Mateus, de 4, que já gostam de brincar com a argila. O ofício passa de geração em geração”, orgulha-se Glória Maria.
Em Santana do Araçuaí outros nomes sobressaem, a exemplo de Mercinda Severa Braga, nora de dona Izabel; Aneli Brandão, e o jovem João Augusto Ribeiro, de 20, que aprendeu a trabalhar com a tia Ana Ribeiro, e dá um ar contemporâneo às bonecas do Vale do Jequitinhonha. “Estamos vendendo pela internet, mas um problema está no transporte. Embalamos muito bem para não quebrar nada”, explica Glória Maria.
Vitrine Para conhecer melhor a vasta gama de produtos, os visitantes têm, em Belo Horizonte, uma vitrine especial no Centro de Artesanato Mineiro. Criado em 1969, em espaço no Palácio das Artes, na Avenida Afonso Pena, 1.537, no Centro, fica aberto de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h, e aos sábados e domingos, das 9h às 13h. “Ficamos fechados durante 11 meses e agora o movimento está melhor”, diz a gerente Cláudia Aparecida da Silva Santos.
Com 300 artesão cadastrados e acervo em torno de 20 mil itens, o Centro de Artesanato Mineiro, sem fins lucrativos, tem como objetivo manter a identidade cultural do estado e a herança do saber e do fazer. “É uma vitrine permanente”, resume Cláudia Santos. Do Jequitinhonha, vieram as tradicionais bonecas criadas por Glória Maria, Mercinda Aneli e Augusto. “As peças começaram utilitárias, a exemplo das panelas, moringas e bilhas, e, com o tempo, foram evoluindo”, diz Cláudia, mostrando um filtro de água em forma de mandacaru.
O Centro de Artesanato chamou a atenção do servidor público carioca Luciano Muniz, que visitou o local na companhia da professora Maria Bauer, natural de Volta Redonda (RJ) e residente na capital. “É realmente uma vitrine do artesanato mineiro”, disse Luciano olhando as famosas bonecas do Vale. Ao lado, a amiga acrescentou que o ofício conta uma história e abre portas para que as pessoas de outros estados conheçam os locais de criação das peças.
Arte enraizada no cotidiano
O artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha não pode ser visto apenas do ponto de vista da importância como gerador de emprego, renda e de recursos nos municípios onde há população dedicada à atividade, como observa o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG). Os saberes proporcionados pelo ofício, de acordo com a instituição, vão além, “acionando sentimentos de pertencimento aos seus territórios, identidades etnicamente diferenciadas, dimensões culturais”.
Conforme o dossiê de reconhecimento da arte em barro do Vale do Jequitinhonha como patrimônio imaterial de Minas, a atividade foi historicamente desenvolvida pelos grupos, “porque se integram aos seus modos de vida diferenciados, não havendo ‘recuperação’ no tempo presente, mas formas de resistências socioculturais frente às invisibilidades históricas a que esses grupos foram submetidos”.
O registro em 2018 dos Saberes, Ofícios e Expressões Artísticas envolveu uma série de etapas, entre as quais a de identificação por meio do Cadastro do Patrimônio Cultural. O artesanato em barro se desenvolve nos municípios do Alto, Médio e Baixo Rio Jequitinhonha, havendo em cada comunidade características próprias que marcam as especificidades existentes nas produções de suas peças, como tonalidades de cores, base dos pigmentos (barro, minério e plantas), expressões, entre outros fatores.
Os especialistas destacam que o processo de produção é basicamente o mesmo, respeitando-se sempre o uso da natureza como fonte de matéria-prima. Assim, além do valor estético e artístico, o artesanato do Jequitinhonha apresenta uma tradição que está presente nas vivências de diversas pessoas e comunidades da região. Está escrito no dossiê: “Por isso, ele deve ser percebido como parte integrante e de grande importância na construção da identidade local e mineira, uma vez que os saberes e os modos de fazer relacionados à arte em barro estão associados à cultura, à memória e à identidade das(os) artesã(ãos) e de toda população do Vale do Jequitinhonha, pois o artesanato está enraizado no cotidiano de praticamente todos os moradores, incluindo os não produtores”. (GW)