Ouro Preto – Minas tem na pedra-sabão um dos pilares da sua arte, cultura e história. Foi com essa matéria-prima que o mestre do Barroco, Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), esculpiu os 12 profetas de Congonhas, imprimiu seu talento à portada das igrejas de Ouro Preto e marcou monumentos que atraem visitantes do mundo inteiro e se tornaram patrimônios da humanidade. Ao longo do tempo, a pedra – tecnicamente chamada esteatita – ganhou espaço cada vez maior e se multiplicou em objetos utilitários, a exemplo de panelas de cozinha, e itens variados de decoração.
Quem já foi a Ouro Preto, Mariana e Congonhas, na Região Central de Minas, certamente levou como suvenir uma peça na forma de pirâmide, imagem de santo ou caneca. A maioria delas é feita nos distritos de Santa Rita, em Ouro Preto, e Cachoeira do Brumado, em Mariana.
Com a pandemia, turistas em fuga e o município mergulhado muitas vezes na onda roxa do programa estadual Minas Consciente, que criou diretrizes para a flexibilização das atividades econômicas, artesãos de Santa Rita, considerada a Capital Mundial da Pedra-sabão, amargaram prejuízos. Houve longo período de lojas fechadas e o cancelamento de feiras ao ar livre, que respondem por boa parte das encomendas. Mas, se na vida e na arte a criatividade vale ouro, nos negócios se torna fundamental, pois garante a sobrevivência.
Esse sentimento é demonstrado em vários relatos feitos ao Estado de Minas, que acompanhou o trabalho de artesãos em Ouro Preto. Nesta matéria, a quinta reportagem da série “Reinvenção das nossas tradições”, que o EM publica desde domingo, eles falam dos problemas encontrados para tentar driblar os efeitos da pandemia de COVID-19 sobre as vendas de produtos típicos e identificados com a cultura das cidades históricas de Minas.
“No início, fiquei com a loja fechada durante 60 dias, então tive que segurar as pontas, pois tenho 40 empregados, todos pais e mães de família. Não podia demitir ninguém”, conta Eliomar Ricardo Vilaça, dono da Bras'Art, atuando há 15 anos no mercado de peças em pedra-sabão e com vendas em Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná. A produção diária é de 500 peças.
Para evitar a dispensa de funcionários, Eliomar usou suas reservas financeiras. “Fomos fazendo e estocando, e mantive todos aqui. Já pensou? Quarenta pessoas desempregadas representam 40 famílias sem dinheiro no fim do mês”, afirma, ao lado da mulher, Claudia. “Ainda não saímos das dificuldades, o turismo está fraco, acho que só depois de todo mundo vacinado poderemos respirar mais aliviados. Então, é pro ano que vem.” Atualmente na onda amarela, fase menos restritiva do Minas Consciente, Ouro Preto tem um programa para atender artesãos cadastrados, que recebem cesta básica e, desde a semana passada, ajuda de custo em três parcelas de R$ 300.
Mostrando uma das peças da loja, Eliomar brinca com Claudia: “Somos, aqui, a tampa e a panela”. O funcionário Amaury Oliveira, de 24, complementa no mesmo tom: “Até quando a gente descansa carrega pedra”. Com efeito, há muito mais do que panelas de pedra no estabelecimento, localizado na Rua do Engenho. Os turistas que aparecem encontram outras utilidades domésticas, a exemplo de fôrmas para pizza, provoloneiras (para o queijo Provolone), jogos, cubos de gelo e, claro, peças de decoração variadas e até mesmo a panela de pressão feita da pedra-sabão.
Mais difícil
Perto dali, o artesão Fernando Muniz da Silva, de 67, sente os efeitos da crise, que bateu forte: “Estou vivendo da minha aposentadoria”, conta. Mesmo com as vendas minguando, ele não perdeu o pique durante alguns meses e continuou produzindo, em família, pirâmides, copos e outros objetos com a pedra que faz a fama de Santa Rita. Agora, em agosto, as atividades do artesão paralisaram.Para quem trabalha na informalidade ainda está difícil encontrar o caminho das pedras. Outro artesão revela ter parado de trabalhar há seis meses. “Tenho dois ajudantes e não dispensei ninguém. Usei um dinheirinho que tinha guardado, e vou esperar um mês para tentar voltar ao normal. Na zona rural, a situação de artesãos (chamados popularmente de ‘paneleiros’) ficou mais difícil do que na cidade”.
Ajuda no frete
No histórico distrito de Cachoeira do Brumado, em Mariana, predominam duas atividades: o artesanato das panelas de pedra e a produção de peças em sisal. “Aqui, sabemos fazer esse trabalho e vivemos dele”, informa o presidente da Associação dos Artesãos e Produtores Caseiros, Vicente Paulo de Carvalho, que trabalha no setor há 30 anos. “Só Deus sabe como será. Agora, conhecemos apenas dificuldades”, lamenta. O número de famílias dedicadas ao artesanato é incerto, “praticamente todo o distrito”, e , assim, a roda da economia local emperrou. “Muita gente pensa em parar, eu vou aqui 'arranhando' até a hora em que houver mudança.”
A situação está tão difícil que o presidente da associação pediu socorro ao prefeito de Mariana, Juliano Duarte, e teve retorno, conforme disse ao EM o chefe do Executivo local. “A pedra-sabão para fazer a panela vem da região de Santa Bárbara, e o preço do frete é muito caro. Então, diante da gravidade, e como a associação tem declaração de utilidade pública municipal, a prefeitura vai pagar o frete na totalidade, começando no momento em que nos for entregue toda a documentação necessária”, explicou. Outra medida para ajudar os artesãos, disse o prefeito, está na limpeza dos locais de produção, que geram muitos resíduos. O serviço será feito com uma retroescavadeira e caminhão.
Eternizada por Aleijadinho
No trevo de entrada de Santa Rita, distrito localizado a 30 quilômetros da sede de Ouro Preto, o monumento “Escultor”, com 5 metros de altura e pesando quase 18 toneladas, dá as boas-vindas e mostra que o local é a Capital Mundial da Pedra-sabão. Vale, então, conhecer melhor a origem do título. Especialistas dizem que a história da pedra-sabão em Minas se mistura ao Ciclo do Ouro, pois o material foi amplamente usado, na época da colonização para fabricação de peças da construção civil. Como referência, o material eternizou obras do maior ícone da arte barroca brasileira, o escultor, entalhador e arquiteto Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que usou a matéria-prima em portadas, altares e imagens.
Foi a pedra-sabão, por exemplo, a matéria-prima usada pelo mestre do Barroco no frontispício da fachada da Igreja São Francisco de Assis, no Centro Histórico de Ouro Preto. De acordo com pesquisas, a pedra-sabão é uma matéria-prima muito resistente e de uso ilimitado. A resistência costuma ser comparada à do mármore, com a vantagem de ser refratária, podendo suportar temperaturas bastante elevadas. Usada na fabricação de artigos de decoração, como esculturas e ornamentos para jardins, tem destino certo também como panelas, lareiras e lavabos.
À espera dos fiéis visitantes
Na Cidade dos Profetas, apelido de Congonhas, a incerteza domina os dias do artesão Antônio Nascimento, de 72 anos, envolvido no ofício desde os 10. “Estou parado, trabalhando mais por encomenda. Antes fazia umas 20 panelas por dia, agora no máximo cinco. O pior mesmo é a incerteza, não dá para comprar matéria-prima se não tiver venda.”
Antônio Nascimento mantém uma loja perto do Santuário Basílica Senhor Bom Jesus de Matosinhos, reconhecido como patrimônio da humanidade. Uma luz pode ser a volta dos turistas, já que o templo barroco está abrindo as portas de terça a sexta-feira, das 6h às 16h; e aos sábados e domingos, das 6h às 12h (sem necessidade de agendamento). Durante a semana do jubileu (7 a 17 de setembro), estará fechado. A programação será toda on-line.
Escultor renomado de peças sacras, Luciomar Sebastião de Jesus exalta o potencial da pedra-sabão. “Nessa região de Santa Rita de Ouro Preto, Cachoeira do Brumado e Congonhas, até Piranga, há muitos artesãos. A pedra-sabão tem uma característica importante: é térmica, mantém o calor dos alimentos. A fôrma de pizza, por exemplo, deixa essa delícia borbulhante por muito tempo.”
Luciomar destaca ainda o trabalho dos mestres-canteiros, capacitados para a arte de talhar a rocha bruta e transformá-la em chafarizes, e, nas igrejas, balaustrada, colunatas, pináculos e outras partes. Resta, então, esperar que novos ventos soprem para garantir trabalho, renda e a perenidade de ofícios tradicionais que retratam a história de Minas – em beleza, criatividade e sabor.