Com a renda já comprimida pelos efeitos da pandemia de COVID-19 sobre a economia, os mineiros passaram a reduzir o consumo da carne vermelha e o uso do carro e da motocicleta para fugir dos aumentos persistentes dos preços da comida e dos combustíveis. O aperto financeiro não só cresceu como acentuou a desigualdade social, segundo levantamento feito em parceira pelo Estado de Minas e o Instituto Opus Consultoria & Pesquisa. Enquanto as famílias de menor poder aquisitivo empobreceram, o grupo de abastados ampliou os rendimentos durante a crise sanitária, mas ninguém escapou da inflação elevada no país. Independentemente dos ganhos, 74% dos mineiros estão comendo carne com menor frequência e dois terços usam menos o carro.
Para os mais pobres, com vencimento familiar de até dois salários mínimos (R$ 2,2 mil), as dificuldades aumentaram, após 67% desse grupo terem perdido renda por causa da pandemia, de acordo com a pesquisa Estado de Minas/Instituto Opus. Lutando para administrar o orçamento, 84% se viram obrigados a diminuir o consumo de carne ou colocam a proteína na mesa apenas de forma esporádica. Entre os ricos, cuja renda familiar passa de R$ 11 mil, 54% conseguiram elevar os ganhos depois da chegada do coronavírus e 47% mudaram os hábitos.
Os pesquisadores ouviram mil pessoas por telefone em 273 municípios de Minas Gerais entre 27 e 30 de setembro. Da amostra, 52% são mulheres, 48% homens e mais da metade (54%) tem a partir de 45 anos. Do ponto de vista do poder aquisitivo, 52% auferem rendimento familiar de até 2 salários mínimos. O grupo de maior renda, por sua vez, inclui 10% que ganham de cinco a 10 salários (R$ 5.500 a R$ 11 mil) e 4% com vencimento familiar acima de 10 mínimos (R$ 11 mil).
"A inflação nos atingiu de tal forma que temos de controlar tudo. Antes, era possível comprar mais coisas. Agora, é levar para casa só o básico"
Cirlei Dias, aposentada
A realidade captada na pesquisa reflete o novo dia a dia da família da aposentada Cirlei Dias, de 65 anos. Ao EM, ela confessou sentir saudade do tempo em que podia fazer compras em abundância e se beneficiava das promoções nos supermercados e açougues para reforçar a dispensa de casa. Com a inflação, foi preciso mudar a rotina. Agora, a preferência é por ovos, pés de frango e suã, com preços mais acessíveis e a renda apertada depois da pandemia.
Como Cirlei, outros consumidores aos poucos substituem a carne vermelha, abrindo mão de um prato mais rico. A pesquisa em parceria do EM verificou que 20% dos mineiros deixaram de comer carne. Entre as opções bovinas mais baratas encontradas no varejo, o acém encareceu 30,26% nos últimos 12 meses terminados em setembro na Grande Belo Horizonte, com base na pesquisa do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), prévia da inflação oficial do Brasil, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesse mesmo período, a média geral de preços subiu 10,26%.
Na sexta-feira, Cirlei fez compras para os próximos dias no valor de R$ 80 num açougue na região Leste da capital mineira. Ela deixou de fora vários itens, como alcatra, chã de dentro e contrafilé, cujo quilo ultrapassou os R$ 50 na cidade. “Quando venho aqui, tenho comprado carne de segunda. Ou sempre optado por comer ovo ou outras carnes mais baratas, como frango e porco, que são mais em conta”, afirma.
Até mesmo o frango deixou de ser alternativa para muitas famílias. O preço do produto subiu 21,42% na Região Metropolitana de BH em um ano até setembro. De acordo com a pesquisa do EM/Instituto Opus, 58% dos mineiros com renda familiar de dois a cinco salários mínimos (R$ 2,2 mil a R$ 5.500) perderam renda durante a pandemia e o consumo de carne diminuiu para 53% desse grupo.
A aposentada Cirlei Dias não acredita que o país terá uma melhora rápida e teme que as dificuldades persistam até o fim do ano: “A inflação nos atingiu de uma tal forma que temos que controlar o consumo de tudo. Antes, era possível comprar mais coisas. Agora, temos de levar para casa somente o básico. Pelo visto, o Natal vai ser diferente, mais simples do que imaginávamos”.
Poder público
O economista Matheus Dias, diretor da Opus Consultoria, afirma que todo o contexto vivido pelo Brasil desde março do ano passado contribuiu para uma situação complicada agora: “A pandemia foi muito complicada para as famílias mineiras. O que é mais chocante é que esse fenômeno atinge duas vezes mais os pobres do que os mais ricos, como os que ganham 10 salários mínimos. A pandemia também afetou a renda das famílias e outros fatores sociais, mas deixou os pobres mais pobres e os ricos mais ricos”.
Ele afirma que será preciso uma atuação do poder público para evitar novas catástrofes: “Temos que buscar reparar esse dano social que ocorreu nos últimos meses. Vai ser cada vez mais necessário termos um governo atuante e que se preocupe com essas questões. As famílias mais carentes atuam mais na informalidade e são as que têm menos condições de se proteger nesse cenário de adversidade. Agora, com a abertura do comércio, essas pessoas têm oportunidade de emprego, mas são as que recebem salários menores e mais expostas a essas mudanças econômicas”.
Fim de semana
O comerciante Etevaldo Pereira, de 51, também precisou mudar hábitos para cortar gastos. Acostumado a fazer churrasco nos fins de semana, ele agora opta por uma alimentação mais básica. “Não tem jeito. Um dia é frango, no outro comemos ovos. Ficaremos assim até as coisas melhorarem no país. Passamos a comer carne vermelha somente nos fins de semana, mesmo assim em quantidades menores”.
Ele tem uma visão pessimista do futuro no Brasil: “Nada vai mudar. Acho que o brasileiro tem de se acostumar a uma nova realidade. Tudo encareceu e somos vítimas disso. Temos que fazer contas o tempo todo para tentar viver bem. Nós, os mais pobres, sempre seremos os mais atingidos, infelizmente”.
Carro, só no fim de semana
O Instututo Opus, em parceria com o Estado de Minas, também mostrou na pesquisa que 66% dos mineiros reduziram o uso de carro devido aos seguidos aumentos dos preços da gasolina e do etanol no último ano, motivados pela elevação do dólar e do barril de petróleo no mercado internacional e pela entressafra da cana-de-açúcar. O hábito atingiu justamente os que ganham até dois salários mínimos, dos quais 76% reduziram ou simplesmente deixaram de usar o carro.
O eletricista Renildo Pereira Ramos, de 58 anos, decidiu usar o carro apenas nos fins de semana. De segunda a sexta-feira, ele faz todo o serviço usando ônibus, embora tenha de carregar uma maleta pesada com suas ferramentas. Significativa, a economia nos gastos gira em torno de R$ 400 por mês. “Com esse combustível num preço absurdo, não dá para tirar o carro da garagem. A gente costuma demorar 20 minutos para pegar o ônibus de volta para casa, mas não há jeito, infelizmente.”
"Faço a maioria das coisas a pé. Com isso, economizo combustível e também estacionamento caro"
Arthur Oliveira, médico
A inflação dos combustíveis atingiu até mesmo quem recebe salários mais altos. É o caso do médico Arthur Oliveira, de 26, que trabalha na região hospitalar de BH. Ele passou a usar o carro apenas para o lazer ou ir ao supermercado. Diariamente, o motorista do Uber virou seu amuleto. “Agora, faço a maioria das coisas a pé. Com isso, economizo combustível e pagar também por um estacionamento caro. O carro agora só me leva para locais mais distantes”, conta.
Os combustíveis estão entre os principais vilões da inflação, de acordo com o IBGE. Nos últimos 12 meses terminados em setembro, o preço da gasolina subiu 39,48% na Grande BH, medido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), prévia da inflação oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O etanol encareceu 66,15% ante a média geral de preços que alcançou 10,06% no período. (RD)