Francisco Sá – Ainda sofrendo os efeitos de uma crise hídrica resultante daquela que é apontada como a pior seca dos últimos 90 anos, que já jogou 127 municípios em situação de emergência, Minas Gerais vê a mancha da escassez de água se manifestar não apenas em áreas do chamado semi-árido mineiro, como o Norte e o Vale do Jequitinhonha, mas se alastrar também em regiões tidas como grandes produtoras agrícolas, como o Triângulo, se estendendo pelo Centro-Oeste e pelo Vale do Rio Doce. Não se trata só de um fenômeno sazonal, alertam especialistas, mas de uma condição que vem se agravando ao longo dos anos, resultado das mudanças climáticas. E que, ironicamente, como em um efeito cascata, atinge o campo, se espalha pelo comércio, com impactos na área urbana, chega à indústria e acaba por afetar toda a economia.
Como em uma cadeia em que a extinção de nascentes leva ao secamento de córregos e estes à exaustão de rios, o fenômeno começa a ser sentido com maior impacto em municípios menores do interior, dependentes da geração de receita primária no campo. E muitos deles vêm de um passado em que água era sinônimo de abundância. É o que ocorre nas terras de Francisco Sá, no Norte mineiro. Antes rico em água – condição que inclusive inspirou seu antigo nome, Brejo das Almas – a cidade se tornou, nas décadas de 1970 e 1980, o maior produtor de alho do estado, com geração de renda e movimento intenso no comércio. Mas, com o passar anos, as fontes foram secando.
Hoje, rios e córregos da região, que eram perenes, estão completamente secos. A população enfrenta racionamento, porque a barragem do Rio Sao Domingos, que abastece a cidade, está com menos de 14% de sua capacidade. Como o sumiço da água, a produção de alho e de outras hortaliças definhou. Ao ponto de, atualmente, quase tudo o que os moradores consomem ser importado de outras regiões, abalando a economia municipal pelo aumento dos preços dos produtos agrícolas, ao mesmo tempo em que a geração de renda é prejudicada. Uma transformação dramática que mostra como os impactos das mudanças climáticas, se começam a ser sentidos mais fortemente no campo, não tardam a chegar à área urbana.
O efeito das alterações do clima na cadeia produtiva é destacado pelo consultor Pierre Santos Vilela, do Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena e Média Empresa (Sebrae Minas). “Se os produtores de hortaliças, por exemplo, deixam de produzir por falta de água, ficam sem renda. Então, deixam de comprar insumos, não compram mais adubos, não compram mais ferramentas, afetando o comércio local”, relata. “Como não têm mais renda, os pequenos agricultores podem reduzir até o consumo de produtos básicos, como arroz e feijão. Também deixam de gerar empregos. Aí, as pessoas que perderam empregos, ainda que temporários, deixam de ser consumidores em potencial. Passam a depender de um auxílio do governo ou do seguro-desemprego. Isso impacta muito o comércio”, explica Vilela, que é engenheiro-agrônomo.
Além da falta de água para o consumo humano e a lavoura, as mudanças do clima, com a estiagem mais intensa, comprometem o nível dos reservatórios das usinas hidrelétricas, elevando o custo da energia, o que também, de outra forma, atinge duramente o comércio, assim como a indústria e a prestação de serviços, observa Vilela. “A escassez de chuvas traz problemas para a geração de energia, pois o Brasil depende de água para manter a sua matriz elétrica”, afirma o analista do Sebrae, lembrando as consequências difusas da crise energética, que afetam grandes negócios, mas fazem sofrer mais intensamente os menores. “Para os pequenos empreendedores, os custos são mais sensíveis, a exemplo do que ocorre com donos de restaurantes e lanchonetes, que precisam manter os freezers ligados o tempo todo”, exemplifica.
Prefeituras também
sofrem impactos
Na mesma linha, a economista Ana Paula Bastos, da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), destaca o efeito dominó da escassez hídrica resultante das mudanças climáticas, lembrando que o próprio poder público é um dos afetados. A crise hídrica, ao reduzir o dinamismo do comércio, também compromete a arrecadação de impostos das pequenas prefeituras, com reflexos inclusive na área social. “Quando a arrecadação do município diminui, aumentam as desigualdades sociais”, constata.
A geógrafa Letícia Oliveira Freitas, uma das autoras do estudo “Vulnerabilidade da mesorregião Norte de Minas face às mudanças climáticas”, é outra especialista que constata os reflexos das alterações do clima sobre a economia das pequenas cidades. “As restrições impostas pelo clima podem acarretar crise econômica, uma vez que muitos dos municípios do Norte de Minas apresentam economias pouco dinâmicas, o que coloca a região em situação de vulnerabilidade”, observa.
Autora da pesquisa ao lado dos meteorologistas Ruibran dos Reis (do Instituto de Meteorologia Climatempo) e Tomás Calheiros – português vinculado à Universidade de Lisboa, parceira da PUC Minas na elaboração da pesquisa –, Letícia é taxativa ao afirmar que a alteração no clima não é um risco para o futuro. “Os impactos das mudanças climáticas já ocorrem e se mostram cada vez mais severos. O cenário de Francisco Sá ilustra como as alterações do clima trazem impactos para a economia de municípios onde as atividades agropecuárias têm papel relevante.”
Brejo das Almas secou
A fartura de água e a grande produção agrícola em Francisco Sá hoje só existem na história da antiga Brejo das Almas, e na memória de pequenos agricultores do lugar, que plantavam e colhiam para o próprio sustento e vendiam o excedente. Alguns, como José Sílvio Ribeiro Alves, de 60 anos, tinham no cultivo a principal fonte de renda e com ela movimentavam a economia da cidade.
“Naque tempo, a gente não comprava quase nada de alimento para casa. Hoje, é bem diferente. Temos que comprar quase tudo”, diz José Sílvio, “Sem água, não tem mais como produzir”, constata o agricultor, em uma mistura de lamento e de explicação para a mudança brusca – de fornecedor, virou comprador daquilo que vendia.
José Sílvio plantava alho e hortaliças nas margens do Rio São Domingos, onde, recorda, a água abundante permitia a irrigação dos plantios por sistema de gravidade, mesmo nos períodos de estiagem, já que o manancial corria o ano inteiro. Hoje, o São Domingos só tem água no período chuvoso, por pouco tempo.
Dono de uma pequena propriedade cortada pelo leito, o bancário aposentado Elton Lourenço von Sean, de 54, recorda que nas décadas de 1970 e 1980 circulava dinheiro na cidade, com ajuda da agricultura. “Todo mundo aqui plantava alguma coisa: além de alho, feijão, abóbora, cebola, tomate e outras verduras. Acho que de fora, mesmo, só chegava a maçã”, relata Elton, integrante de uma família que se dedicava à produção de alho.
FIO D'ÁGUA Na cidade, em locais em que a água não desapareceu, tornou-se pouca. Morador do distrito de Canabrava, a 18 quilômetros da área urbana de Francisco Sá, o aposentado e pequeno agricultor João Evangelista Rodrigues, de 72, conta que já produziu muita coisa no seu pequeno terreno aproveitando a água do Rio Canabrava, que passa nos fundos da casa. Hoje, diferentemente de outros mananciais da região, pelo menos no trecho do terreno de João Evangelista o Canabrava tem água, devido a uma barragem que foi construída acima no leito.
No entanto, o aposentado diz que a quantidade é insuficiente e ele praticamente não produz nada mais. “A água diminuiu. Para plantar, a gente precisa da irrigação e a energia está muito cara”, diz o sertanejo. “Hoje, até cebolinha verde a gente tem que comprar”.
O campo vai buscar alimento na cidade
Se os impactos das alterações climáticas já são realidade, como destacam especialistas, eles já fazem parte do cotidiano de comerciantes como o casal Antônio Elimárcio de Moura e Rafaela Oliveira Lima, à frente de um pequeno sacolão, o Empório do Campo, em Francisco Sá. Elimárcio relata que, como , a antiga Capital do Alho não produz mais hortaliças, o caminho da produção, do interior para os centros urbanos, se inverteu. Hoje, ele precisa se deslocar até Montes Claros, cidade-polo da região, para comprar hortifrutigranjeiros para o mercadinho. A viagem, de 42 quilômetros, eleva os custos dos produtos.
“Acho que o aumento por causa do frete gira em torno de 30% a 40%”, estima Rafaela. O próprio Elimárcio é quem transporta frutas e verduras adquiridas no Centro de Abastecimento do Norte de Minas (Ceanorte), arriscando-se no trecho da movimentada BR-251 duas vezes por semana – rodovia sem duplicação, que tem tráfego pesado de caminhões e carretas que viajam do Sul/Sudeste para o Nordeste brasileiro.
“Trago de tudo, até tempero verde”, afirma o comerciante. Ele carrega os produtos em seu próprio veículo, um pequeno caminhão-baú que leva mercadorias também para outros comerciantes de verduras e frutas da cidade. Rafaela Oliveira lembra que o aumento da temperatura, que dificulta a produção de hortaliças, como a cebolinha, também eleva o custo dos produtos. E exemplifica citando a situação do chuchu. “Até outro dia, comprávamos chuchu a R$ 25 a caixa. Agora, passou para R$ 80”, conta.
Comerciante do mesmo ramo na cidade, Jane Santos Cruz também acredita que o custo dos hortifrutigranjeiros no município são elevados em cerca de 40% por causa do frete. “Com a seca, os preços aumentam. As verduras e frutas ficam mais perecíveis e se perdem mais rápido”, lamenta Jane. Ela trabalha em companhia do marido, Daniel Correa, que também viaja até a Ceanorte, em Montes Claros, duas vezes por semana, para comprar as mercadorias, transportadas em uma caminhonete D-20.
“Aqui está muito seco. Acho que esse clima prejudica a qualidade das verduras e frutas, além de provocar o aumento de preços por causa da baixa oferta. A seca interfere em tudo”, opina Josemary Alves de Souza, dona de casa, moradora de Francisco Sá e freguesa do casal Jane e Daniel.
VENDAS DESPENCAM O empresário Ronaldo Figueiredo Prado, da Casa Prado, um dos estabelecimentos comerciais mais antigos de Francisco Sá, há 54 anos no mercado, relembra dos tempos áureos da fartura de água no antigo Brejo das Almas. “Quase todo mundo aqui plantava alho e mantinha outras culturas. O dinheiro circulava na cidade, pois as pessoas vendiam o que produziam e depois faziam as compras no comércio local”, diz Ronaldo, que estima em 50% a queda de vendas dos comerciantes da cidade. “Também tivemos a queda da produção leiteira no município”, acrescenta.
Fundada por Joaquim de Deus Prado, o Seu Quincas, pai de Ronaldo, a Casa Prado é dos poucos pontos comerciais da época de ouro do alho que se mantém de portas abertas até hoje. Ao estilo dos antigos armazéns do interior, o estabelecimento comercializa uma grande variedade de produtos (mais de 5 mil itens, segundo Ronaldo), incluindo produtos curiosos, como corveta de espora (usada na montaria) e bainha de foice.