Que Portugal está na moda não é novidade. Suas cidades e zonas costeiras estão repletas de turistas, atraídos pela história e cultura de um país de onde surgiram grandes exploradores, pelo bom tempo, pela excelente gastronomia e pelos preços mais acessíveis do que os de outros destinos europeus.
Além disso, essa pequena nação de pouco mais de 10 milhões de habitantes também se tornou um exemplo de como superar com sucesso a crise econômica que começou em 2008 e, mais recentemente, a pandemia de coronavírus.
Mas o que é esse "capitalismo sardinha"?
Projetado para fora
A portuguesa Patrícia Lisa, analista do centro de estudos Real Instituto Elcano, em Madri, na Espanha, diz que "capitalismo da sardinha" reflete os valores de seu país.
"Não só a sardinha, mas também tudo o que se relaciona com o turismo, com a reconversão industrial, calçado, vinhos, moda... e uma forte aposta na chamada diplomacia econômica, que anda de mãos dadas com a internacionalização da economia", enumera ela à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Na verdade, destaca Lisa, a diplomacia de Portugal é conhecida por ser extremamente intervencionista.
"Isso se dá pela forma como o país consegue se projetar no exterior: apesar de ser uma economia pequena, continua com uma projeção internacional maior do que se esperaria dele", diz.
Esse é, segundo Lisa, um dos principais eixos estruturantes de Portugal: a sua forte aposta na internacionalização. Devido à posição geográfica, o país sempre esteve voltado ao exterior. Algo que historicamente pôde ser visto no compromisso com o mar e com a economia marítima e que agora também está ligado às novas tecnologias e à agenda das energias renováveis.
Claro que nem sempre foi assim e houve anos em que Portugal teve de olhar para dentro e ocupou o noticiário internacional por razões muito menos otimistas.
Da 'troika' ao milagre português
Após a crise econômica global de 2008, Portugal mergulhou numa grave depressão.
Em 2011, à beira da falência, o governo português solicitou um pacote de resgate no valor de 78 bilhões de euros à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O desembolso foi autorizado, sob a condição de que o país implementasse medidas de austeridade.
Foram os anos da "troika", como são popularmente conhecidas as imposições da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu (BCE) e do FMI.
O período foi caracterizado por um corte significativo das despesas públicas - o que afetou principalmente os salários dos funcionários públicos e as aposentadorias. Já os impostos foram aumentados.
Mas o desemprego não parou de aumentar — atingiu a cifra recorde de 17,7% em 2013 — nem a pobreza e o descontentamento social. Por outro lado, o consumo e a moral dos portugueses despencaram.
Após as reformas realizadas por um governo de centro-direita sob a supervisão da troika, Portugal se libertou dos credores internacionais em junho de 2014, embora não houvesse motivo para muitas comemorações: a taxa de desemprego rondava os 12%, 20% da população viviam abaixo da linha da pobreza e 485 mil portugueses emigraram do país entre 2011 e 2014.
Após as eleições de 2015, foi formado um novo governo de centro-esquerda liderado pelo socialista António Costa, atualmente no cargo.
O governo Costa — com seu aclamado ministro da Fazenda, Mário Centeno — começou a reverter as medidas de austeridade, mas sem descuidar da responsabilidade fiscal.
"Eles (governo) passaram a gastar um pouco mais, por exemplo, em termos de salários, e isso teve um efeito multiplicador na economia. As despesas aumentaram, mas não demasiadamente, e isso teve um impacto positivo no PIB (Produto Interno Bruto, a soma das riquezas de um país), e na arrecadação", explica António Afonso, professor da Escola de Economia de Lisboa e ex-economista-chefe do Banco Central Europeu (BCE).
A política anti-austeridade acabou marcando um ponto de inflexão desde os momentos mais difíceis da crise financeira e rendeu frutos.
"O modelo de Costa baseava-se no incentivo ao consumo mais gastos públicos estruturais, ou seja, investimentos públicos em educação e infraestrutura", explica Lisa.
"Não se pode pensar em revolução ou ruptura", ressalva. "Os indicadores econômicos de 2014, antes do governo Costa, já davam sinais de retomada", acrescenta, mas "é óbvio que em 2015 houve uma reversão da política econômica".
A recuperação foi muito perceptível em 2017. Naquele ano, o PIB português cresceu 2,7%, a taxa mais elevada do país desde o início do novo milênio enquanto a taxa de desemprego caiu para níveis pré-crise.
Centeno foi apontado como o "Ronaldo das finanças", em alusão ao atacante português Cristiano Ronaldo, pelo surpreendente desempenho da economia portuguesa.
"2017 foi o ano de todas as vitórias para Portugal, ficou na moda em todas as dimensões, nas dimensões econômica, política e social", afirma Lisa. "Ganhamos até o Eurovision (competição internacional de canções que conta principalmente com participantes europeus)", brinca.
Foi o que ficou conhecido como o "milagre da economia portuguesa".
Exportações e turismo
Do lado financeiro, há um fator crucial que explica o sucesso da economia portuguesa.
"O que aconteceu notavelmente em Portugal é que a taxa de poupança aumentou drasticamente em 2011, 2012 e 2013", explica Afonso. "As pessoas basicamente não estavam consumindo, o que significa que as importações caíram. Quando as importações caem, o saldo em conta corrente (diferença entre exportações e importações) melhora."
Em relação ao bom desempenho das exportações, segundo o economista, isso se deveu a dois fatores.
Por um lado, a transformação da indústria portuguesa nos últimos 20 anos, que passou a produzir e exportar produtos tecnologicamente avançados.
"Houve muitas exportações no setor têxtil, mas como desde os anos 2000 há muita concorrência da China, da Ásia em geral, as pessoas passaram a apostar mais na qualidade, na diferenciação", diz o economista. "Isso implica que as exportações aumentaram estrategicamente."
Por outro lado, um contexto de contração fiscal no período 2011-2012 "tem impacto nos preços, então é possível aumentar a produtividade". "Se você ganha produtividade, ganha competitividade lá fora, se ganha competitividade, consegue exportar mais a um bom preço."
"É o que vimos nos últimos 10 anos ou mais", acrescenta Afonso.
Soma-se a isso o boom do turismo, e ano após ano Portugal tem batido o recorde de visitantes ao país. Antes da pandemia, o turismo representava quase 15% do PIB e o setor era responsável por 10% do emprego.
E, segundo especialistas, outro programa que ajudou a dinamizar a economia foi o denominado Golden Visa, por meio do qual os investidores estrangeiros que comprassem um imóvel de mais de 500 mil euros no país obtinham um visto de residência.
O esquema foi introduzido em 2012 e continuou sob governos socialistas, embora não sem controvérsia.
Cenário pós-pandemia
A boa saúde da economia portuguesa foi duramente atingida pela pandemia do coronavírus e o PIB despencou 8,4% em 2020, a pior recessão desde 1936.
Os visitantes estrangeiros caíram 76% no ano passado.
No entanto, segundo especialistas, as medidas promovidas durante os anos anteriores à pandemia permitiram a Portugal resistir melhor à crise, e o país é um dos que apresentam melhor desempenho na recuperação.
No segundo trimestre deste ano, o país liderou a retomada da zona euro e registrou a maior taxa de crescimento (4,9%) entre os Estados-membros da União Europeia, mais do que Alemanha (1,5%), Espanha (2,8%) ou Itália (2,7).
Do ponto de vista da saúde, por exemplo, Portugal é o que tem a maior taxa do mundo de população completamente vacinada contra covid-19 (86,38%), segundo dados da plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford. Por causa disso, por todo o território, postos de vacinação estão sendo fechados devido à baixa demanda.
Agora, novamente aberto ao turismo e com um cenário praticamente normal, o Banco Central de Portugal espera que o país encerre o ano com um crescimento de 4,8%, enquanto a taxa de desemprego se situa em 6,7%, muito abaixo das nações vizinhas e também dependentes de turismo como Espanha (15%) e Itália (10%).
Desafios
Claro que nem tudo é perfeito para Portugal, e a economia portuguesa ainda tem grandes desafios.
O principal, na opinião de Patrícia Lisa, é reformar o mercado de trabalho.
"É verdade que o desemprego tem permanecido baixo", afirma, "mas o mercado de trabalho português é caracterizado por baixos salários. É um grande desafio para Portugal".
Além disso, há os efeitos colaterais do boom turístico e do Golden Visa, que, para além dos milhões que injetou na economia portuguesa, provocou também um aumento significativo dos preços de moradia, principalmente na capital, Lisboa, e no Porto, a segunda maior cidade do país.
"Esse modelo gerou consequências, o que fez explodir os preços de moradia, especialmente em Lisboa, Porto e Algarve", afirma Lisa.
Em função dos protestos, o governo socialista reformulou a política do Golden Visa, excluindo essas regiões. O objetivo agora é incentivar a compra de imóveis nas ilhas de Madeira e Açores, assim como no interior do país. As mudanças, há muito adiadas, passam a valer a partir de 1º de janeiro de 2022.
Nem mesmo a pandemia travou a alta dos preços de moradia em Portugal — a taxa foi de 8,4% em 2020, de acordo com o Índice de Preços publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE, o IBGE português), menos 1,2 ponto porcentual do que em 2019.
Das associações de defesa do direito à habitação digna, como o Morar em Lisboa ou Habita! denunciam que o mesmo acontece com os aluguéis e que em regiões como Lisboa, Porto ou Algarve eles são, em muitos casos, superiores aos salários. Essas entidades argumentam que mais moradias públicas são necessárias.
Com o plano de Recuperação e Resiliência — dotado de fundos europeus para a retomada pós-pandemia — o governo português prevê construir 26 mil casas até 2026.
Com as suas conquistas e desafios, e considerando o artigo da Foreign Policy mencionado no início dessa reportagem, Portugal é realmente um exemplo para outras economias pequenas?
Lisa se mostra cautelosa e diz que é cedo para determinar modelos a seguir.
"Há outros países europeus, também pequenos, que aderiram à UE depois de Portugal e estão tendo trajetórias extraordinariamente positivas, como é o caso da Eslovênia."
"É verdade que Portugal marcou o ponto de inflexão das políticas de austeridade em termos simbólicos, mas a partir daí tomá-lo como modelo me parece um pouco precipitado", opina.
Moran, por sua vez, argumenta, em seu texto na Foreign Policy, que "os portugueses, com muito menos poder de compra nos mercados globais e ainda uma sardinha entre os salmões no ambiente monetário claustrofóbico da zona do euro, estão mostrando aos pequenos países europeus que, com um mix hábil de medidas políticas e fiscais e um pouco de sorte, você consegue levar uma vida boa e ainda fazer a economia crescer".
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